Search
Close this search box.
Search
Close this search box.

Jeff Bezos e o novo editorial do Washington Post – 04/03/2025 – Wilson Gomes

Na ilustração, à direita, uma galinha paralisada e sem poder se mexer, hipnotizada com o olhar fixo numa linha reta desenhada na sua frente. À direita, a caneta tinteiro que acaba de traçar a linha reta, tem uma gravação no corpo da caneta “The Washington Post”. O fundo da ilustração é branco, e os traços do desenho tem tons sépia escuro, lembrando as ilustrações que apareciam no jornal em 1877 quando fundado por Stilson Hutchins, em contraste das novas diretrizes editoriais de seu dono desde 2013, Jeff Bezos.

“Vamos escrever diariamente em apoio e defesa de dois pilares: liberdades individuais e mercados livres. Claro, também abordaremos outros temas, mas pontos de vista contrários a esses pilares serão deixados para que outros veículos publiquem.”

O “nós” da citação é nada menos do que o prestigioso jornal Washington Post. O autor dessa chocante declaração é seu atual proprietário, Jeff Bezos.

Como chegamos a esse ponto? Se você se acha um democrata convicto, mas está certo de que não deve compartilhar a mesa com posições políticas que considera erradas, perigosas ou inaceitáveis, mesmo que verbalizadas, apoiadas e votadas por um grande número de nossos concidadãos, tenho duas notícias para você. A primeira é que você não está sozinho. Antes, está afinado com uma enorme tendência política mundial. A segunda, lamento, é que há muito pouco de democrata em você.

A democracia é um regime político projetado para acolher, considerar e tratar divergências de entendimento, pontos de vista e interesses. Um regime não é democrático apenas porque nele você pode falar o que quiser, desde que não viole direitos ou avance contra a dignidade dos outros; um regime é democrático se, muito além disso, você tiver que conviver com posições que não aprova e ouvir coisas que lhe são desagradáveis.

Um dos maiores problemas da democracia hoje é a facilidade com que se negligencia a segunda dimensão da discussão e da con vivência públicas —a obrigação de ouvir e considerar o que desaprovamos— enquanto enfatizamos o direito que nosso lado tem de ser ouvido e levado em consideração. Uma piora notável nesse cenário ocorre quando queremos, além disso, a prerrogativa

pedagógica de que se eduquem compulsoriamente os outros em nossos princípios e valores.

Os progressistas, por exemplo, adoram a ideia de educar ideologicamente. Foi assim que surgiram os esforços de alfabetização (ou “letramento”, como preferem os mais americanizados). Há letramento de todo tipo: racial, midiático, de gênero, digital. Não é arrogante e autoritário achar que outros adultos precisam ser alfabetizados? “Imagine! Desde que os outros pensem exatamente o que consideramos certo, somos absolutamente flexíveis, abertos e críticos.”

Bezos prova que o “outro lado” não se sai melhor no quesito.

Ele não diz que proibirá colunistas e repórteres de expressarem pontos de vista discordantes, mas, na prática, impõe um direcionamento editorial que elimina a livre concorrência de ideias dentro do próprio jornal. O pluralismo? Que vá encontrar refúgio em outras publicações ou na internet. O Washington Post, a partir de agora, será um veículo de letramento ideológico.

O que há de comum entre esse projeto e o letramento social dos progressistas? Tudo. No fundo, Bezos e os adeptos do letramento compartilham a mesma convicção: a de que há valores e princípios que precisam ser ensinados e assimilados e que aqueles que não os compreendem corretamente devem ser guiados para o caminho certo. O progressista que quer alfabetizar os outros em raça, gênero e desinformação parte do princípio de que quem não enxerga o mundo sob sua ótica é socialmente ignorante ou adotou valores errados, fruto de privilégios não questionados ou resistência reacionária. O liberal que quer evangelizar o público sobre livre mercado e liberdade individual acredita que quem não aceita esses valores é refém do coletivismo e da mentalidade estatista, devendo portanto ser corrigido.

Ambos os lados consideram seus valores como axiomas inquestionáveis, e quem discorda não tem apenas uma perspectiva diferente, mas precisa ser reeducado. No caso do letramento progressista, isso assume a forma de programas educativos, iniciativas institucionais e cursos de conscientização. No caso do Washington Post, isso se traduz em uma política editorial que restringe a variedade de opiniões ao que

a alta administração do jornal considera “verdades fundamentais”. Em um contexto, são workshops sobre privilégio branco e interseccionalidade. No outro, são editoriais sobre a necessidade de cortar impostos e desregulamentar a economia. O método difere, mas a intenção é a mesma.

Ora, a democracia não é um projeto de reeducação das massas conduzido por aqueles que sabem o que é melhor para todos. Democracia pressupõe que as pessoas possam chegar a conclusões diferentes e que nenhuma concepção possa se afirmar como a única verdade admissível. Quem não aceita isso, no fundo, compartilha a crença de que a sociedade só será livre quando todos pensarem da sua maneira.



Fonte ==> Folha SP

Relacionados