Só a simples menção à palavra ditadura já me causa calafrios.
Sessenta e um anos após o golpe militar de 1964 –eu tinha apenas dois anos quando tudo “revolucionou”–, vê-se ainda hoje que nem todo mundo está aí para a democracia e direitos constitucionais, dado o que aconteceu no 8/1.
Passados pouco mais de uma década daquele 1º de abril, caí nas garras dos golpistas, homens com suas fardas verdes-olivas, suas espingardas e seus coturnos bem lustrosos.
Eu era um garoto estudante de escola técnica no subúrbio da zona oeste do Rio de Janeiro. Os meus parcos 15 anos foram abalados por xingamentos, desaforos, tapas na cara e ofensa racial de “macaco”, como forma de me humilhar e deprimir.
Não era inocente, mas não trilhava qualquer fé comunista, nem militava nas trincheiras sindicais ou político-partidárias. Aliás, se militasse, o meu partido político, com certeza, estaria na clandestinidade.
Eu era um simples estudante, e como tal editava o jornal estudantil Boca Livre, coadjuvado pelo amigo Aldemar, aliado de toda hora em atividades e movimentos culturais na década de 1970.
No dia da nossa prisão, estávamos no portão principal da fábrica Bangu, engrossando um ato de protesto e possível greve, quando os gorilas (eram assim chamados os militares do Exército) chegaram e, sem perguntas ou qualquer cerimônia, nos surraram e nos prenderam.
Foi uma experiência traumática, felizmente que não se repetiu mais em minha vida.
Hoje a palavra ditadura parece uma conjunção de vogais e consoantes que ajudam a compor os verbetes de um dicionário, sobretudo para a geração mais nova, que nasceu após 1985. Não se engane. Há os que viveram também naquele período, inclusive militares, que negam as atrocidades, as barbáries e tratam o “golpe” como “revolução”.
O Brasil tem precedentes sérios na história quando o assunto é a tal “revolução”. Assim foi no começo da República, com Floriano Peixoto se imiscuindo no poder ilegal (após a renúncia de Deodoro da Fonseca), contra a opinião pública, incluindo generais legalistas e a intelectualidade que pediam novas eleições.
O “Marechal de Ferro” não cedeu ao grito da galera, para usarmos uma expressão pop. Pelo contrário, decretou estado de sítio, para abafar manifestações. Foi além, prendeu e desterrou para a longínqua Amazonas todos os que não o apoiavam, entre os quais poetas como Olavo Bilac e jornalistas como José do Patrocínio. Rui Barbosa, ao impetrar no Supresso habeas corpus em favor dos presos e desterrados, recebeu reação de Floriano: “Se os juízes concederem habeas corpus aos políticos, eu não sei quem amanhã lhes dará o habeas corpus de que, por sua vez, necessitarão”. O STF rejeitou dez votos a um.
O corajoso da vez foi o juiz Piza e Almeida, a quem, comovido, Rui Barbosa beijou a mão.
Floriano é o pai do populismo político, e usou da força e violência para calar os revoltosos, sobretudo os do seio da liberal oligarquia cafeeira, que elegeria o civil Prudente de Moraes.
Hoje os tempos são outros, mas as lições de outrora são nossas aliadas quando se trata de democracia e liberdade. Não descuremos disso. Todo poder deve emanar do povo, sem trégua e sem anistia.
Fonte ==> Folha SP