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Francisco foi mesmo revolucionário? – 28/04/2025 – Opinião

Francisco foi mesmo revolucionário? - 28/04/2025 - Opinião

Se, em vida, a temperança na caracterização do papado de Francisco já era rara, o momento fúnebre tem se mostrado ainda menos propício a retratos com os pés no chão.

O mito do papa revolucionário vindo “do fim do mundo” —embora o nome Bergoglio revele rapidamente sua origem italiana— tende a se fortalecer, ignorando fatos básicos. Tudo se passa como se Francisco tivesse ascendido ao poder por meio de uma rebelião das bases eclesiais contra a Cúria Romana, quando, na realidade, foi eleito por um conclave composto majoritariamente por cardeais nomeados por Bento 16, muitos ainda sob forte influência deste.

As recorrentes menções a uma Igreja mais aberta e flexível também costumam desconsiderar que o papa das entrevistas informais e do célebre “quem sou eu para julgar?” é o mesmo que manteve quase intocado o corpo doutrinário da Igreja, mesmo quando teve oportunidade de endossar propostas discutidas e legitimadas colegialmente —como o diaconato feminino e a flexibilização do celibato clerical, pautas debatidas no Sínodo da Amazônia, por exemplo.

É verdade que essa tensão entre impulso reformista e reafirmação da tradição não é novidade na história da Igreja. Mas ela assumiu uma intensidade particular sob Francisco, e tende a se acirrar no próximo papado. Afinal, apesar do êxito midiático e simbólico de sua liderança, a crise estrutural da Igreja Católica permanece aguda, especialmente em contextos como a Europa e a América Latina.

Nos últimos anos, uma das principais estratégias da Igreja para reverter essa tendência foi a aposta na pauta ambiental. A encíclica “Laudato Si’” (2015) não apenas recolocou a crise ecológica no centro do discurso eclesial como também resgatou uma linguagem afinada com os anseios de jovens e movimentos sociais, tentando reposicionar a Igreja como protagonista de um novo humanismo planetário.

Esse esforço entusiasmou setores progressistas, mas também aí a retórica de inovação veio acompanhada de acenos à tradição: a mesma “Laudato Si’” que denunciou o “antropocentrismo despótico” reafirmava, sem hesitação, que não há verdadeira ecologia sem o respeito à “masculinidade e feminilidade” dos corpos. Quantas reportagens, ou mesmo análises acadêmicas, muitas vezes mais normativas que objetivas, lembram-se de destacar esse traço ambivalente da ecologia “integral” católica?

Como se não bastassem os desafios herdados, o próximo papa também terá de enfrentar os efeitos internos da crescente polarização política global. Apesar das crises institucionais e da perda contínua de fiéis em várias regiões do mundo, a Igreja Católica ainda preserva uma capilaridade rara: conecta comunidades rurais no interior da África, elites políticas na Europa, populações indígenas na Amazônia e migrantes nas periferias urbanas do Sul global.

O conclave que se aproxima será, portanto, mais do que um rito sucessório ou uma escolha entre perfis pessoais. Será um espelho, imperfeito mas revelador, das disputas que atravessam os imaginários religiosos, as hierarquias morais e os tabuleiros geopolíticos do mundo contemporâneo.

TENDÊNCIAS / DEBATES

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.



Fonte ==> Folha SP

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