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Meme da Guiana Brasileira não chateou ninguém em Portugal – 06/05/2025 – Rui Tavares

Meme da Guiana Brasileira não chateou ninguém em Portugal - 06/05/2025 - Rui Tavares

Há um tempo alguém inventou o meme da Guiana Brasileira —a ideia de que Portugal seria um território ultramarino brasileiro, uma espécie de 28º estado, mas na Europa— e alguém insistiu que os portugueses ficaram zangados com ele. Mas, tirando alguém indignado nas redes que é sempre possível achar, não vi ninguém chateado do meu lado do Atlântico.

Na verdade, a ideia de uma Guiana Brasileira reencontrada no fim do mar, como a do Imenso Portugal de que cantava Chico Buarque, revela mais ternura do que outra coisa. Ambas vêm de um lugar de surpresa com as semelhanças que o viajante encontra entre os dois países depois de uma travessia tão longa.

A primeira vez que cheguei ao Brasil, aos 27 anos, no ano 2000, atravessei o país do Rio de Janeiro a São Paulo, de Minas Gerais a Brasília, e de São Luís do Maranhão ao sul da Bahia. E o maravilhamento foi grande ao sentir que, embora vindo de um país pequeno, era como se a vida me tivesse dado um país enorme de presente.

Sei bem as camadas de complexidade histórica de que esta afirmação se reveste, mas antes que me queiram cancelar, ponham-se só no lugar de um jovem que descobre que pode atravessar um país continental na sua própria língua. Essa surpresa, imagino eu, deve ser semelhante à de um brasileiro que chega à Europa e descobre na considerável diversidade de Portugal, do Minho ao Algarve e de Lisboa ao Porto, passando pelas ilhas da Madeira e dos Açores, uma terra cujas referências culturais, gastronômicas e linguísticas são tão semelhantes às suas.

Daí que a pergunta, quase um divertimento inocente, seja natural: e se esses dois países fossem mesmo o Brasil europeu e o Portugal sul-americano? Daí, no tempo dos memes, a Guiana Brasileira ou, como já alguém respondeu, a Groenlândia portuguesa. A ideia não transporta consigo o expansionismo agressivo de um Donald Trump delirando com a anexação do Canadá como 51º estado americano e, portanto, podemos brincar à vontade.

Além disso, como já demonstraram a historiadora portuguesa Ana Cristina Nogueira da Silva e o historiador brasileiro João Paulo Pimenta, a verdade é que algo como uma nação bi-hemisférica chegou mesmo a ser tentado.

Em 1822, nos meses em que deputados do Reino Unido de Portugal, do Brasil e dos Algarves ainda trabalharam numa Constituição conjunta, várias soluções foram propostas, incluindo a criação de um Parlamento com duas sedes, uma no Rio de Janeiro e outra em Lisboa, que se reuniriam depois num Congresso bi-hemisférico. Nenhuma solução era então prática, e nenhuma vingou, mas em teoria o resultado seria a antecipação do meme por 200 anos.

De qualquer forma, se fosse hoje possível dar materialidade a essa afinidade que acredito existir, e que não é excludente de outros países, em particular os de língua portuguesa, nem dos projetos de integração regional que temos na Europa ou na América do Sul, ela deveria estar numa noção de cidadania cultural, linguística e de direitos humanos. E para isso não precisamos de governos, estados ou imposições de autoridade. Ordem e bacalhau! Caros concidadãos, já vi lemas piores.



Fonte ==> Folha SP

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