O desconforto de muitos em relação ao benefício da prisão domiciliar, por razões humanitárias, concedido ao ex-presidente Collor de Mello, condenado por corrupção, decorre da desigualdade que prevalece no sistema penal e da ineficiência do Supremo.
O processo se arrasta desde 2015 e, quando chega ao fim, fica um sentimento de frustração pela perspectiva de pena cumprida em apartamento luxuoso.
Collor tem idade avançada (75 anos), é verdade, e doenças graves, conforme exames realizados entre 2019 e 2022 (o que não o impediu de se candidatar ao governo de Alagoas), mas, segundo laudo médico emitido pela penitenciária, seriam “passíveis de tratamento e acompanhamento dentro do sistema prisional alagoano”.
Para o ministro Alexandre de Moraes, “a compatibilização entre a dignidade da pessoa humana, o direito à saúde e a efetividade da Justiça Penal indica a possibilidade de concessão da prisão domiciliar humanitária”.
Essa compatibilização tão saudável de valores (respeito à dignidade humana, direito à saúde e efetividade da punição), porém, não costuma alcançar o preso comum, que não exerceu autoridade pública ou política. Com efeito, preso pobre, branco ou preto, não tem direito nem a diagnóstico médico.
O primeiro presidente eleito pelo voto direto depois do regime militar, amparado no discurso da moralidade pública, sofre impeachment e termina a atribulada carreira com o selo judicial de corrupto e o selo político de aliado do mais repulsivo governante da história do Brasil, o golpista Jair Bolsonaro.
Collor não é um qualquer. Até ser preso (pela impaciência processual de Alexandre de Moraes), frequentava festivos coquetéis em Brasília (mais pelo efeito folclórico do que por poder efetivo), que reúnem, com meticulosa amplitude e liberalidade, ministros do STF, do STJ e do TCU, parlamentares de correntes antagônicas, suspeitos ou não de algum malfeito, diretores de agências governamentais, CEOs de empresas interessadas, advogados ilustres e lobistas.
Porque Collor não é um qualquer, a decisão de Alexandre de Moraes é juridicamente excepcional. Porque a decisão é excepcional, paira no imaginário o sentimento de que a sentença não é pra valer.
Dados do Ministério da Justiça (dezembro de 2024) indicam que no sistema penitenciário há mais de 29 mil mulheres encarceradas (entre elas, gestantes e mães de crianças pequenas), 2.806 presos com mais de 70 anos de idade e 9.090 detentos com algum tipo de deficiência: intelectual (2.532), física (3.895), visual (1.361), auditiva (634) e múltiplas (674). Difícil imaginar que em tais segmentos não haja pessoas que, por diferentes motivos, merecem o regime domiciliar humanitário.
Um abismo separa a pregação retórica do Supremo Tribunal Federal da realidade.
O tribunal declara existir “violação massiva de direitos fundamentais no sistema prisional brasileiro”, mas a vida segue. As violações também. O CNJ acaba de divulgar estudo dando conta de que 110 mil réus condenados por tráfico deveriam ter pena menor. São prisões inúteis, como, afinal, inútil é a prisão de Collor.
No país do faz de conta e dos constrangimentos, pátria de analfabetos funcionais, penduricalhos e outras espertezas, era uma vez um tribunal.
Colunas e Blogs
Receba no seu email uma seleção de colunas e blogs da Folha
Fonte ==> Folha SP