Se o desaparecimento de qualquer espécie pode ser comparado à destruição da biblioteca de Alexandria, com a perda de uma quantidade incalculável de informações sobre aquele ser vivo e suas interações com outras criaturas e seu ambiente, em alguns casos há outra biblioteca sendo incendiada. Ainda que não seja do tipo que contém livros escritos, trata-se, mesmo assim, de um repositório imaterial –portanto, não tão diferente assim do que levou à produção dos papiros da antiga capital egípcia. Refiro-me às tradições culturais produzidas por espécies não humanas.
Pode parecer estranho pensar nesses termos, mas as barreiras imaginadas entre o Homo sapiens e outras espécies ficam bem mais relativas após a leitura de um intrigante artigo assinado por um trio de pesquisadoras especializadas em comportamento animal. O grupo, que inclui a brasileira Patricia Izar, do Departamento de Psicologia Experimental da USP, analisou os atuais dilemas de conservação dos primatas (o grupo de mamíferos ao qual pertence o ser humano) e propôs estratégias que levem em conta a diversidade cultural deles.
A análise de Izar e suas colegas Erica van de Waal e Martha Robbins, publicada recentemente no periódico científico Philosophical Transactions of the Royal Society B, destaca, em primeiro lugar, que ainda sabemos relativamente muito pouco sobre as culturas primatas.
Que elas existem e podem ser muito diversificadas está fora de dúvida já faz um bom tempo: há muitas dezenas de comportamentos aprendidos e transmitidos socialmente, envolvendo ou não o uso de instrumentos variados, já devidamente documentados. E podemos identificá-los não apenas entre os grandes símios, primos de primeiro grau da humanidade (chimpanzés, gorilas e orangotangos), como também em espécies de porte modesto e parentesco mais distante conosco na Ásia tropical e mesmo entre os brasileiríssimos macacos-pregos (dos gêneros Sapajus e Cebus).
Um dos problemas, porém, é que essas espécies já bem estudadas e acompanhadas por anos a fio na natureza, em diferentes projetos de longo prazo, são um pedacinho muito pequeno da diversidade do grupo: das mais de 500 espécies de primatas já descritas, só 21 já tiveram algum tipo de diversidade cultural mapeada. Considerando o que sabemos sobre a complexidade social e a cognição desses bichos, é muito improvável que essas centenas de espécies não contem com suas próprias tradições culturais também –só não foi possível enxergá-las ainda, em geral por falta de recursos para estudá-las direito.
Além dessa falta de conhecimento, já se sabe que, mesmo nos locais que têm sido objeto de estudo, algumas dessas tradições primatas estão mudando por causa do impacto humano nos habitats dos bichos, e que o repertório cultural dos animais tende a ficar empobrecido quando a presença do Homo sapiens os encurrala.
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É claro que não é nada simples enfrentar esse cenário. As pesquisadoras, no entanto, defendem que não é possível pensar nas estratégias de preservação da diversidade biológica dos primatas sem levar em conta também a sua diversidade cultural, de preferência mapeando melhor também as espécies cujas tradições mal conhecemos ainda e que podem ser bem diferentes do que foi visto até agora. Ignorar isso é aceitar a perda de um tesouro que nos conecta da maneira mais clara possível com o resto da biosfera.
Fonte ==> Folha SP – TEC