A queda de uma árvore amazônica de grande porte, numa pequena comunidade de ribeirinhos e indígenas no médio rio Solimões, acabou servindo para a revelação de urnas funerárias de grande porte. O achado é considerado sem precedentes pelos arqueólogos que estão na linha de frente dos trabalhos de resgate e pesquisa.
A árvore tombou, e as urnas ficaram aparentes na comunidade São Lázaro do Arumandubinha, que fica numa região preservada da Amazônia. A cidade mais próxima é Fonte Boa (AM), um lugar onde não há estradas, e só se chega por água.
O resgate de duas urnas de grande porte –a maior tem uma boca de 90 cm, com 55 cm de comprimento– e de outras cinco urnas menores foi delicado, porque as peças se movimentaram com a raiz da árvore, e a abertura das urnas foi deslocada da vertical para a horizontal. Houve fratura de parte das peças. Os arqueólogos contaram com a participação direta de integrantes da comunidade.
Por precaução científica, a equipe envolvida, que integra o grupo de arqueologia do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, não arrisca dizer a que período histórico pertencem as urnas, se as peças podem estar ligadas, por exemplo, à Tradição Polícroma da Amazônia.
Na Tradição Polícroma, muito comum nos achados arqueológicos no médio rio Solimões, a aplicação de cores na cerâmica remete a um período de 800 d.C. até a chegada e ocupação dos portugueses à mazônia, nos séculos 16 e 17.
Existem indícios de que as urnas podem ter centenas ou milhares de anos, em mais uma evidência da ampla ocupação indígena na Amazônia brasileira.
O lugar onde as peças foram encontradas —havia ossos dentro das urnas, muito provavelmente ossos humanos— é 1 das 70 ilhas artificiais identificadas pelo grupo de arqueologia do Instituto Mamirauá. Essas ilhas podem ter entre 2.000 e 3.000 anos, segundo os pesquisadores. Foram erguidas por populações em áreas de várzea, para consolidação de terra firme e ocupação.
As ilhas envolvem sofisticada engenharia indígena, conforme os arqueólogos, em que material removido de outras partes é misturado com fragmentos cerâmicos, para sustentação. As atuais populações tradicionais que ocupam essas ilhas, cujas medidas podem chegar a 400 m de extensão e 80 m de largura, chamam os lugares de “aterrados” ou “cavados”.
“Sem a menor sombra de dúvida, é um material antigo e indígena”, afirma o arqueólogo Márcio Amaral, do grupo do Instituto Mamirauá. “A datação por carbono-14 vai dizer a datação dessas peças”, diz a arqueóloga Geórgea Holanda Araújo, que integra o mesmo grupo. Os dois estão na linha de frente dos trabalhos sobre o achado arqueológico.
Os pesquisadores afirmam que as urnas continham elementos que remetem a rituais funerários –a própria presença das urnas menores, acompanhando as grandes que continham os ossos, seria um indicativo nesse sentido. Fora dos vasos, foram encontrados carvão, sementes e ossos de peixes, quelônios e sapos.
Vasos com a boca expandida e com grande volume, como os que foram encontrados, são considerados sem igual pelos arqueólogos do Instituto Mamirauá que atuam na Amazônia ocidental.
As peças foram levadas para um laboratório do instituto em Tefé (AM), e uma análise será feita em busca de respostas sobre o achado arqueológico.
O fato de não terem tampas, por exemplo, pode indicar que as urnas não sejam tão antigas quanto a datação das ilhas artificiais encontradas na região amazônica. As urnas teriam sido enterradas embaixo do piso de uma casa, um método comum na Amazônia do passado.
“A região onde as urnas foram encontradas é um complexo de sítios arqueológicos. Há dois sítios próximos. Isso indica que era uma área bastante povoada”, diz Márcio. “São necessárias muitas pessoas para construir essas ilhas, que têm vegetação antrópica diferenciada, com árvores frutíferas, medicinais e palmeiras. A floresta amazônica é uma construção indígena.”
Segundo Geórgea, a metodologia empregada na retirada das urnas foi única. “Houve um protagonismo das pessoas da comunidade. E um planejamento prévio de dois meses.”
É comum que ribeirinhos e indígenas do médio Solimões encontrem peças arqueológicas nas comunidades e imediações, um indicativo de que a região de floresta era densamente povoada antes da colonização portuguesa.
Na terra indígena Porto Praia de Baixo –um território não demarcado na margem do Solimões, próximo a Tefé e que sofreu com a seca extrema em 2023 e em 2024–, os indígenas descobriram um sítio arqueológico quando se preparavam para coletar castanha. Eles encontraram vasos, tampas, pedaços de cerâmica e outras peças de um cotidiano distante.
O grupo de pesquisa do Instituto Mamirauá analisou, no fim de 2019, quatro coleções, com 65 artefatos, guardadas nas casas da comunidade. No relatório do grupo, de fevereiro de 2020, a conclusão é a de que a descoberta “é uma atestação de que essa região foi anteriormente ocupada pelos povos produtores das cerâmicas arqueológicas pertencentes à fase Tefé”.
A fase citada, segundo o relatório, está associada à Tradição Polícroma da Amazônia.
Em 2018, sete urnas funerárias da Tradição Polícroma foram retiradas da comunidade Tauary, que fica na Floresta Nacional de Tefé. Na Ufopa (Universidade Federal do Oeste do Pará), em Santarém (PA), houve análises aprofundadas da cerâmica e dos vestígios humanos. As urnas regressaram a Tefé em abril deste ano.
Em São Gabriel da Cachoeira, no noroeste do Amazonas, arqueólogos encontraram elementos de uma região densamente povoada, com presença antiga e contínua de populações tradicionais –por pelo menos 2.000 anos– e decisiva para a ocupação do restante da Amazônia. A região fica no alto rio Negro.
Após dois processos de escavação em 2019 e em 2022, o Parinã (Programa Arqueológico Intercultural do Noroeste Amazônico) elaborou os primeiros relatórios sobre as peças encontradas –principalmente fragmentos de cerâmica– no quintal do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) e na praça da diocese.
As escavações se concentraram em dois pedaços da terra de um metro quadrado cada, até uma profundidade de 80 cm. Dali foram retirados 12.127 objetos, principalmente fragmentos de cerâmica (9.114) e material lítico, ou seja, pedras com algum tipo de lapidação (2.881 objetos). Entre os fragmentos estão peças associadas à Tradição Polícroma da Amazônia.
Em algumas peças, há indícios de uso de carimbos para impressão de elementos gráficos. O material foi comparado ao conjunto cerâmico que continua sendo produzido pelos indígenas da região. “É muito provável que parte do conjunto arqueológico possa ser diretamente associado aos tukanos e baniwas”, cita um relatório preliminar.
Fonte ==> Folha SP – TEC