Neste quarto episódio da nossa série Como Deus Nasceu, que busca apresentar o que sabemos sobre as origens dos três grandes monoteísmos do planeta, vamos tentar responder uma pergunta shakespeareana: afinal, o que há num nome? Para ser mais exato, o que significa o nome tradicionalmente atribuído ao Deus único da Bíblia, e o que ele pode nos dizer sobre as origens dessa divindade?
Caso não tenha acompanhado as postagens anteriores da série, você pode conferi-las abaixo:
Parte 1
Parte 2
Parte 3
A resposta curta pode parecer um tanto desanimadora: sobram hipóteses e faltam certezas. Vamos à resposta longa, que, espero, talvez seja um pouco mais iluminadora.
Os textos originais da Bíblia Hebraica designavam o Deus de Israel de muitas maneiras, mas seu “nome próprio” acabou se consolidando como o conjunto de quatro consoantes do chamado Tetragrama Sagrado (“tetragrama” = “quatro letras”, em grego): YHWH.
O hebraico originalmente não grafava as vogais; além disso, há milênios, surgiu o costume de não pronunciar o Tetragrama, substituindo-o pela palavra “Adonai” (literalmente “Meus Senhores”) ou, mais tarde, “Ha-Shem” (“O Nome”). Por isso, não há certeza absoluta sobre a pronúncia original de YHWH, embora a maior parte dos especialistas atuais adote formas como Yahweh ou, aportuguesando, Javé. Adotaremos aqui a forma preferida pela tradução da Bíblia de Jerusalém, uma das mais respeitadas internacionalmente: Iahweh.
A etimologia do nome, como você talvez já tenha imaginado, não está clara. Na famosa passagem do livro do Êxodo em que Moisés se depara com Deus na sarça ardente, o próprio Iahweh, quando Moisés pergunta o seu nome, usa a frase hebraica “Ehyeh asher ehyeh”, traduzida como “Eu sou aquele que é” (literalmente “aquele que sou”). Existe, portanto, uma associação do termo com formas do verbo “ser”, que alguns interpretaram como carregando o sentido de “Ele faz algo surgir”, “Ele traz as coisas à existência”.
Seja como for, a única coisa indiscutível em relação ao nome de Iahweh é que ele não aparece nas listas de deuses da terra de Canaã e da cidade-Estado de Ugarit que apresentamos por aqui na postagem anterior. Do ponto de vista dos habitantes da região, parece ser uma “nova” designação divina, que só começa a aparecer em inscrições lá pelo meio da Idade do Ferro (depois de 900 a.C.).
Talvez, porém, haja alguns exemplos anteriores da presença dela. Inscrições egípcias datadas do reinado do faraó Amenófis 3º (1390-1352 a.C.) falam de um certo “YHWA na Terra dos Shasu”. Aqui as coisas começam a ficar intrigantes. “Shasu” é um termo genérico usado pelos egípcios para designar grupos pastoris, nômades de fala semítica (o grupo de idiomas do hebraico). É comum associá-los com as áreas desérticas e semidesérticas das atuais península do Sinai, Jordânia e noroeste da Arábia Saudita, embora também haja registros da presença deles em regiões menos secas nos atuais Israel e Palestina.
Se YHWA for mesmo uma referência a Iahweh, e se os Shasu adoravam esse deus, as paragens habitadas por eles, de acordo com os egípcios, batem com as regiões onde Iahweh teria se manifestado originalmente aos israelitas liderados por Moisés. No hebraico da Bíblia, são áreas designadas com nomes como “Edom”, “Seir”, “Parã”, “Teimã” e, claro, “Sinai” – as montanhas do deserto como a morada divina por excelência.
Será que a adoração a Iahweh teria sido transmitida aos primeiros israelitas por nômades vindos dessas regiões? A ideia talvez se encaixe no processo de formação de novos assentamentos na região montanhosa do centro de Canaã após o colapso do fim da Idade do Bronze, como também vimos no episódio anterior.
Seja como for, ainda que Iahweh tenha entrado na Terra Prometida como forasteiro, ele passou a se “naturalizar”, assumindo características dos deuses cananeus. É esse processo que examinaremos na próxima parte da série. Até lá!
Fonte ==> Folha SP – TEC