A domesticação dos gatos (Felis catus) pode ter começado no norte da África, e numa época bem mais recente do que a estimada até agora, aponta uma nova análise genômica de felinos atuais e antigos. Os dados de DNA indicam que os parentes selvagens mais próximos dos bichanos são originários da Tunísia, e que supostos exemplares domesticados na Europa pré-histórica são, na verdade, gatos-selvagens-europeus (Felis silvestris).
Ainda não se trata do estudo definitivo sobre o tema, já que os pesquisadores, liderados por Claudio Ottoni, da Universidade de Roma Tor Vergata (Itália), não tiveram acesso ao DNA de gatos do Egito (tanto antigos quanto modernos). As linhagens felinas egípcias são consideradas uma parte importantíssima do quebra-cabeças, uma vez que a arte do Egito Antigo é a primeira do planeta a retratar gatos em situações domésticas, por exemplo.
De qualquer modo, a associação com o norte da África de maneira mais geral parece apontar, ao menos em parte, para a associação com a terra do Nilo, e a análise de outras amostras felinas do Velho Mundo traz um pouco mais de confiabilidade às conclusões. Segundo essas pistas, a presença dos gatos domésticos só teria começado a se tornar mais comum em território europeu por volta dos séculos 2º a.C. ou 1º a.C. antes do nascimento de Cristo, quando Roma se transformou numa superpotência e ajudou a espalhar os pequenos predadores aonde quer que seus exércitos chegassem.
Na pesquisa, que saiu nesta quinta-feira (27) no periódico Science, Ottoni e seus colegas trabalharam com 70 genomas (o conjunto do DNA) de felinos antigos, num período amplo que vai de 11 mil anos atrás até o século 19, além de usar mais 17 genomas de gatos-selvagens vivos hoje ou oriundos de museus. As amostras de DNA felino antigo vêm de sítios arqueológicos de grande parte da Europa e da Anatólia (atual Turquia asiática), enquanto as dos animais modernos vêm da Itália, do norte da África, da Bulgária e de Israel.
Para um animal tão comum nas casas e terrenos baldios do mundo todo, o gato doméstico tem uma origem surpreendentemente enigmática e desafiadora de se investigar. A questão é que as diferenças físicas entre os bichanos de sofá e seus parentes próximos na natureza são bastante sutis, a ponto de alguns pesquisadores considerarem que a espécie é apenas “semidomesticada”, escreve Jonathan Losos, pesquisador do Departamento de Biologia da Universidade Washington em Saint Louis que comentou o novo estudo a pedido da Science.
Diante disso, nem sempre é fácil distinguir o esqueleto de um gato-selvagem do de seu parente próximo. Os estudos anteriores que sugeriam uma domesticação muito antiga para a espécie, como o sepultamento de um felino pequeno ao lado de uma pessoa na ilha de Chipre (Mediterrâneo Oriental) por volta do ano 7500 a.C., indicavam que o Oriente Próximo poderia ter sido o berço desse processo.
Tanto nessa região (em áreas como a Turquia, Israel e a Síria) quanto no norte da África existiam populações selvagens do Felis lybica lybica, o gato-selvagem-africano que, segundo um consenso já existente, seria o ancestral dos felinos domesticados. E alguns estudos de DNA antigo anteriores tinham identificado material genético associado aos subgrupos asiáticos da espécie selvagem no sudeste da Europa numa época similar à do enterro no Chipre.
Tudo isso levou à hipótese de que os gatos domésticos, ou seus ancestrais selvagens em processo de domesticação, teriam acompanhado as migrações dos primeiros povos que dominaram a agricultura no Mediterrâneo. Esses grupos teriam adotado os felinos como auxiliares no combate a pragas da lavoura e dos cereais armazenados (como, é claro, os ratos e camundongos). E, ao se espalhar pela Europa graças ao crescimento populacional proporcionado pela agricultura, teriam levado os bichanos consigo.
O problema é que os dados genômicos mais antigos envolviam só o mtDNA (DNA mitocondrial). Trata-se de um pequeno conjunto de “letras” de DNA, equivalente a apenas quatro páginas impressas se fosse transcrito em texto, que se encontra apenas dentro das mitocôndrias, as usinas de energia das células.
O mtDNA é transmitido apenas, de modo geral, pela mãe para seus filhos e filhas, e não se mistura com a grande maioria do material genético, que fica no núcleo das células. Isso significa que ele representa uma parte muito pequena da herança biológica de uma espécie.
E, de fato, quando os pesquisadores analisaram o genoma completo de felinos muito antigos da Europa, entre os séculos 9º a.C. e 3º a.C., todos tinham DNA de Felis silvestris, o gato-selvagem-europeu. Apenas o mtDNA era, em alguns casos, de F. lybica lybica. A conclusão mais provável é que houve alguns episódios de hibridização (“mestiçagem”) entre as espécies na natureza, e não a chegada de formas primitivas dos gatos domesticados à Europa.
Por outro lado, os pesquisadores mostraram que todos os gatos domésticos atuais formam um grupo à parte, com um ancestral em comum, e que esse grupo, por sua vez, está mais próximo dos gatos-selvagens F. lybica lybica do norte da África do que de qualquer outro felino. Por fim, do século 1º d.C. em diante, praticamente todos os gatos encontrados em sítios arqueológicos da Europa têm parentesco com os bichanos domesticados atuais e, de forma mais distante, com as formas selvagens africanas.
Uma possibilidade é que os fenícios, povo de navegantes do atual Líbano que começou a colonizar a atual Tunísia e áreas adjacentes pouco depois de 1000 a.C., tenha começado a levar gatos domesticados para regiões europeias do outro lado do Mediterrâneo. Porém, desenhos no Egito e na Grécia sugerem que a domesticação seria ainda mais antiga.
Por enquanto, ainda é muito difícil obter DNA de gatos mumificados pelos antigos egípcios –os métodos de preparação do corpo, ironicamente, não favorecem a preservação do genoma. A expectativa é que novas tentativas desse tipo rendam frutos no futuro e esclareçam se o Egito de fato foi um centro de domesticação da espécie.
Fonte ==> Folha SP – TEC