“Cada pecado de sua alma, um fio escarlate, cada momento de sua vida, uma mancha.” Esse trecho de “O Retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde, se aplica muito apropriadamente a um grupo de personagens reais: o tecnobaronato, sintetizado na postura oportunista de Mark Zuckerberg.
O dono da Meta, sob o manto da adequação cívica de seus negócios, camuflava até há pouco a degradação moral acumulada de seu retrato escondido, extensível a alguns de seus pares bilionários. O momento chegou para desnudar seu retrato, inaugurando em definitivo e sem pudores a sociedade de radicalização de risco político, econômico e tecnológico.
Não se enganem ao minimizar o cálculo de impacto, pois este atinge não apenas a polarização da política ou do Judiciário, mas sobretudo a economia, afetando a confiança sistêmica por possíveis e imprevistos efeitos de manada em tempo real —e atingindo também, potencialmente, o estoque reputacional de empresas e lideranças.
Nessa nova conjuntura internacional, a palavra de ordem dos barões é combater a regulação por ser “antidemocrática”, tal qual concluíram recentemente em contrição arrependida e aderente à narrativa da alt-right. Porém, trata-se de um engodo, quando na verdade a correta regulação constrange o uso indiscriminado de dados e o lucro com informações alheias, que são a essência do interesse dos negócios das plataformas e de suas possíveis distorções de uso, oportunas a grupos políticos e econômicos predatórios.
Em consequência, a nova política de algumas plataformas não mais interferirá no discurso de ódio, no preconceito e na desinformação —os quais, turbinados por inteligência artificial, tornam-se agora dúbios, alegadamente por uma corruptela do conceito de liberdade de expressão, cuja extensão corrosiva à sociabilidade mais básica é relegada a um pobre contraditório —na forma de “notas da comunidade” facilmente soterradas por uma miríade de notas contraditórias facilmente orquestradas.
O fato é que, para haver democracia, deve haver liberdade de expressão. Todavia, essa não pode ser utilizada para minar a própria democracia sem a qual a estrutura básica de liberdades constitucionais não sobreviverá. Por fim, paralelamente à corrosão da estrutura cívica, a corrupção do conceito de liberdade de expressão tem espelhamento também na economia. Vejamos.
Indo da reputação de uma empresa ou produto até a construção de políticas públicas, estamos todos imersos na estrutura geral de percepção de risco. Assim sendo, a desregulação radical de informações em circulação nas plataformas e o uso indiscriminado de metadados e microtargeting, agora exponencialmente magnificados em seu impacto e falseamento pelas tecnologias de IA, são certamente um vetor de disrupção radical da previsibilidade e confiança mínima.
O brexit e suas consequências foram um exemplo macro do que hoje é potencialmente ainda mais danoso. Mal comparando, o impacto da avassaladora narrativa crítica sobre o Pix no país —alimentada inclusive por erros de comunicação do próprio governo federal, mas aproveitada em diferentes formas pela oposição ao explorar a incerteza— é uma outra amostra do que está por vir.
Para concluir e não nos paralisarmos em um dilema shakespeareano, sugiro três medidas de reação: 1 – a mensuração comparativa e a publicização de rankings de permissividade das plataformas; 2 – a análise da estrutura algorítmica das mesmas em casos de denúncia, coibindo o viés e/ou o espargimento programado e internalizado em categorias semânticas, que potencializa a dependência informacional tóxica; 3 – a articulação estratégica de instituições de pesquisa independentes e de checagem de dados em diálogo com reguladores como a Advocacia-Geral da União, o Supremo Tribunal Federal e Tribunal Superior Eleitoral, dentre outros.
Isso é possível? Onde há poder existe contrapoder. Insisto, portanto, em ser cautelosamente otimista.
TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
Fonte ==> Folha SP