O Supremo Tribunal Federal (STF) iniciará, nesta quarta-feira (5), o julgamento da ADPF (arguição de descumprimento de preceito fundamental) 635, conhecida como a ADPF das Favelas. A ação, em que somos advogados em caráter pro bono, discute a excessiva letalidade da atuação da polícia no estado do Rio de Janeiro, voltada sobretudo contra a população pobre e negra das favelas.
A premissa fundamental da ação é de que é possível conciliar a garantia da segurança pública com o respeito aos direitos dos moradores de favelas —que, na sua imensa maioria, não têm qualquer relação com a criminalidade. As mortes desses moradores —inclusive de crianças— não podem ser tratadas como meros danos colaterais no combate ao crime. As suas vidas importam.
Em 2019, ano em que a ação foi ajuizada, o estado era o epicentro da violência policial do Brasil. Naquele ano, 1.814 pessoas foram mortas em ações da polícia fluminense —quase o dobro de todas as vítimas letais da polícia dos Estados Unidos no mesmo período.
O STF acolheu diversos pedidos formulados na ação, como criar instrumentos de controle sobre operações policiais, impor o uso de câmeras de vídeo nas fardas e viaturas policiais e exigir investigações independentes do Ministério Público em casos de morte provocadas por agentes de segurança pública. Ao contrário do que por vezes se divulga, nunca se pediu na ação e o Supremo nunca decretou a proibição total de operações policiais em favelas.
E os resultados da ADPF têm sido muito expressivos: no ano de 2024, por exemplo, o número de pessoas mortas pela polícia baixou de 1.814 para 699, uma queda de mais de 61%, segundo dados oficiais. Enquanto no resto do Brasil, em estados como Bahia, São Paulo e Amapá, a letalidade decorrente da atuação policial vem crescendo assustadoramente, no Rio de Janeiro dá-se o inverso.
Essa redução não gerou aumento nos índices criminais, pelo contrário. De acordo com dados oficiais do Estado, corroborados por entidades independentes como o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os indicadores criminais relevantes no estado do Rio de Janeiro caíram ou se mantiveram estáveis no período da ADPF: homicídios, roubo, tráfico de entorpecentes, roubo de carga etc.
Evidentemente, quem comete ilegalidades prefere não ser controlado. Por isso, o governo fluminense e setores das polícias fazem forte campanha contra a ADPF das Favelas, que envolve a divulgação de fake news, como a de que ela favoreceria o crime organizado. Na verdade, quem conhece minimamente o Rio de Janeiro sabe das relações entre violência policial, corrupção e milícia. O assassinato de Marielle Franco ilustra essas conexões, com tintas dramáticas. Especialmente nesse cenário, aumentar o controle sobre a atuação da polícia serve para combater a criminalidade, não para favorecê-la.
Apesar da sua redução, a letalidade decorrente da atuação policial no Rio de Janeiro ainda é altíssima, mesmo para os elevados padrões brasileiros. No dia 24 de janeiro, por exemplo, uma violentíssima operação policial nos complexos do Alemão e da Penha, que durou 15 horas, resultou na morte de cinco moradores —quatro deles sem qualquer relação com a criminalidade. Essa letalidade atinge quase sempre pessoas negras, escancarando o nosso racismo institucional. É preciso que o STF julgue a ação procedente e monitore o cumprimento da sua decisão, levando, com tanto atraso, a democracia e a Constituição para favelas e periferias. Com isso, a corte também poderá fixar orientações que sirvam à redução da violência policial em outros estados.
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Fonte ==> Folha SP