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A espada não dói menos quando é manejada por um conquistador não europeu – 03/02/2025 – João Pereira Coutinho

Veículo imaginário híbrido de caravela e tanque de guerra

Todos somos colonialistas. Todos somos colonizados. Eis, em resumo, o espírito do artigo que escrevi semanas atrás nesta Folha, a respeito do ensaio “On Settler Colonialism”, de Adam Kirsch.

O pesquisador Bruno Huberman discorda de mim e avança com dois argumentos: o colonialismo é um fenômeno característico da modernidade (antes do século 15, infere-se, não haveria colonialismo) e o conceito de “indígena” só deve ser aplicado aos nativos de um território conquistado pelos europeus. São duas asserções duvidosas, para dizer o mínimo.

Ponto prévio: o colonialismo foi um processo de brutalidade sobre os nativos. Sobre isso, eu e Bruno Huberman estamos de acordo. Como dizia Churchill, “a história da raça humana é a guerra”. E acrescentava: “Exceto por breves e precários intervalos, nunca houve paz no mundo; e antes do início da história, a luta assassina era universal e incessante”.

Só me afasto de Huberman na forma seletiva como ele aplica a sua grelha de análise. O colonialismo, ao contrário do que afirma Huberman, não é um exclusivo da modernidade e do homem europeu branco.

Partindo do pressuposto de que é possível apagar a história que não nos interessa (a história de egípcios, assírios, persas, romanos, árabes, zulus, astecas, incas etc.), o período moderno e contemporâneo também abarca o colonialismo brutal de russos, turcos ou chineses.

A tese de que o único colonialismo que importa foi produto de europeus brancos é arbitrária e ignara.

O mesmo problema com o conceito de indígena usado pelo colonialismo de assentamento. Afirma Bruno Huberman que indígenas são os que “ocupavam um território reivindicado pelos colonizadores”. É uma verdade, mas uma meia verdade.

Em nome do rigor histórico, seria preciso explicar por que motivo essa definição não se aplica aos povos conquistados por astecas, mapuches ou iroqueses.

Sem falar, claro, dos tibetanos ou dos uigures (esmagados pelos chineses), dos armênios (dizimados pelos turcos) ou até dos ucranianos (submetidos à pata russa no Donbass).

A espada não dói menos quando é manejada por um conquistador não europeu. Se pudéssemos escutar os cadáveres, tenho a certeza de que o terror seria universal.

Meu problema com o colonialismo por assentamento não está no fato de eu ter uma visão mais otimista sobre a história (ou sobre a história do colonialismo). Ironicamente, está no fato de eu ter uma visão ainda mais pessimista sobre a natureza humana, não excluindo ninguém dessa loja de horrores.

Por último, Bruno Huberman afirma que o colonialismo por assentamento não é necessariamente antissemita. Fato: pode ser apenas desconhecimento histórico. Mas as consequências da teoria, essas, podem ser antissemitas.

O desconhecimento histórico está na comparação de duas realidades distintas: se os colonizadores europeus encararam as Américas como “terra nullius” (terra que não pertencia a ninguém, pronta para ser colonizada), os sionistas do século 19 sabiam que a Palestina era parte do Império Otomano.

Viver, trabalhar ou comprar terra na Palestina implicava autorização das autoridades locais –e, depois da Primeira Guerra Mundial, concordância da potência administrante (o Reino Unido, que acabou por limitar severamente a emigração judaica em 1939).

De resto, e como lembra Adam Kirsch, nos primeiros 75 anos da chegada dos puritanos a Massachusetts, os indígenas passaram de 140 mil para 10 mil. Na Palestina, e desde a fundação do estado de Israel, a população árabe mais do que quintuplicou (de 1,3 milhões para 7,5 milhões).

Aliás, conclui Kirsch, é exatamente por isso que o conflito continua: porque os palestinos não são índios, como protestava Yasser Arafat, com razão. Não consta que exista um conflito igual na Nova Inglaterra.

Como é evidente, a aplicação tosca do colonialismo por assentamento ao caso israelense-palestino só pode ter como resultado a exortação de uma Palestina “livre”, do rio Jordão ao mar Mediterrâneo. E “livre” de quê?

De “colonos”, ou seja, de judeus. Se isso não é antissemitismo, não sei o que é.

Infelizmente, essa rejeição não é um exclusivo do Hamas e seus simpatizantes. Do lado israelense, cresce uma rejeição igual contra a criação de um Estado palestino e a devolução dos territórios (realmente) ocupados.

Mais um exemplo de que o colonialismo, quando nasce, pode ser para todos.



Fonte ==> Folha SP

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