O filósofo William James, pioneiro da psicologia nos Estados Unidos, disse que, se numa noite escura projetarmos a luz de uma pequena lanterna no rio Mississippi, a superfície iluminada estará para a massa total das águas como a nossa consciência para a massa de nossa vida inconsciente.
Antonio Candido repetiu a frase e, com um ponto de exclamação que não era do seu feitio, desabafou: “Que coisa difícil!”. Não falava de psicologia, mas dos romances brasileiros que, suando sangue, lia para escrever sua coluna semanal no Diário de S.Paulo. Entre os lançamentos, os romances apenas passáveis eram gotículas de um caudaloso Mississippi.
Naquele dia, ele comentou livros de três estreantes. O primeiro, disse, além de “pretensioso” e “pedante”, era uma “marcha de cartola e jaquetão”. O segundo mesclava “ingenuidade científica, ironia fácil e pseudocomplexidade”. No último, “o espírito é reduzido à piada, o vigor à brutalidade, a finura à falta de escrúpulos”.
Esse comentarista desabusado não era o grande crítico cultural do século 20, o último pensador da formação nacional. Não passava de um iniciante que resenhava bobagens como “Banana Brava”, de José Mauro de Vasconcelos, e “Éramos Seis”, da senhora Leandro Dupré.
Candido tinha 23 anos, em 1941, quando começou a escrever em Clima, a revista que fundou com amigos. Pouco depois, começou a fazer os “rodapés literários”, publicados primeiro na Folha da Manhã —que deu origem à Folha de S.Paulo— e em seguida no Diário de S.Paulo.
Foram centenas de artigos —com o triplo do tamanho desta coluna— em tempos turbulentos: Estado Novo, censura, Dia D, queda de Hitler e Vargas, reorganização da esquerda, eleições. Época em que estiveram na ativa Mário e Oswald de Andrade, Drummond, Erico Verissimo, Graciliano Ramos, Vinicius de Moraes. Os anos da estreia de Guimarães Rosa, Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto. Antonio Candido comentou tudo.
Graças ao empenho de um pesquisador, e à tecnologia, a íntegra do que o crítico publicou na imprensa nos anos 1940 encontra-se à disposição de todos, de graça, na internet. O autor da proeza é Daniel Essenine Takamatsu Arantes. Ele percorreu bibliotecas, arquivos, plataformas da internet e coleções. Xerocou, reproduziu à mão, copiou e colou.
“Caminho Crítico: Um Roteiro de Leitura dos Artigos de Antonio Candido em Clima, Folha da Manhã e Diário de S.Paulo (1941-1947)” é uma tese de doutorado que foi defendida, em 2022, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. A professora Maria Augusta Fonseca orientou Daniel Arantes —e revelou a ele alguns textos desconhecidos de Candido.
Colossal, a tese tem 820 páginas. Nas primeiras 200, Arantes resume os temas que mobilizaram o crítico: o modernismo; a poesia lírica e a participante; a matéria social e o primado da forma na literatura; o romance como gênero burguês. As outras 600 são os seus artigos.
O trabalho foi feito com capricho e objetividade, sem shows de erudição. Arantes não quis “escrever bonito”, ou no paralelepítico jargão acadêmico. E fica bastante evidente que leu toda a bibliografia acerca do seu objeto de estudo.
O crítico tinha 23 anos quando publicou seu artigo inaugural, em Clima. Com pena leve e autoironia, fez uma declaração de princípios: daria preferência aos escritores jovens; não encararia a literatura como expressão individual, e sim como fenômeno social; o momento era de mudanças.
Seis anos depois, constata-se que fez bem mais. Avaliou os jovens com empatia, mas foi áspero ao se deparar com empulhações. Desenvolveu um estilo sem paralelo na imprensa: claro e sem concessões. Não se furtou a atacar medalhões nem fez média com conhecidos e amigos. Não foi um colunista brasileiro típico.
Por exemplo: disse que Jorge Amado e Erico Verissimo eram bons escritores que a elite atacava por serem populares. E então comprovou, com exemplos vexatórios, que os últimos livros deles eram horrendos.
Reconheceu a qualidade de João Cabral e Clarice Lispector sem saber quem eram; foi o primeiro a elogiá-los. Admirou Carlos Drummond de Andrade desde sempre e até o fim. À sua revelia, porque era modesto, Antonio Candido é o centro desses rodapés —um homem reto que fala verdades e dá o melhor de si a outrem, sem esperar nada em troca.
A tese de Daniel Arantes com o autorretrato do crítico quando jovem pode ser encontrada na íntegra no site teses.usp.br.
Fonte ==> Folha SP