Em 2013, todo mundo no mundo da matemática sabia que o brasileiro Artur Avila estava sendo considerado para a medalha Fields, o prêmio mais prestigioso da disciplina. Alguns de nós, conhecedores do seu trabalho, nos movimentávamos para que seu valor fosse reconhecido, mesmo vindo de um país “diferente” (Artur é o único ganhador da medalha que nasceu e teve todos os seus estudos num país em desenvolvimento). Já o próprio estava totalmente focado em descobrir mais matemática. Lembro a minha surpresa quando ele me explicou o que estava tentando fazer: desenvolver uma teoria global da equação de Schrödinger.
A equação de Schrödinger determina o comportamento de partículas subatômicas a partir da ação exercida nelas pelo meio ambiente, que os físicos chamam potencial. Para saber como as partículas evoluem “basta” encontrar as soluções da equação. O problema é que isso é muito difícil, em geral. Eu nunca trabalhei nesse tema, mas conhecia o suficiente para saber que praticamente todos os trabalhos até então lidavam com dois casos apenas: potencial muito pequeno, que pode ser tratado por métodos perturbativos; ou potencial muito grande, que requer métodos bem diferentes.
O objetivo do Artur era, nem mais nem menos, fazer a ponte entre esses dois casos extremos e assim estabelecer uma teoria válida para todas as escalas de potenciais! Enquanto o comitê avaliava se ele merecia ou não ganhar a medalha por aquilo que já tinha feito, ele visava, simplesmente, revolucionar uma das áreas mais importantes e difíceis da física matemática. Já tinha obtido um avanço importante em 2009, mas faltava um pedaço da teoria, que terminou justamente em 2013. O trabalho completo foi publicado dois anos depois, na revista Acta Mathematica, uma das mais tradicionais de toda a matemática. E vem dando frutos desde então.
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Dez anos antes, em colaboração com a colega Svetlana Jitomirskaya, o Artur resolvera o famoso problema dos dez martinis: os níveis de energia de um elétron num cristal sujeito a um campo magnético formam um conjunto de Cantor, tal como havia sido sugerido por Douglas Hofstadter. Mas a solução era uma colcha de argumentos diferentes, dependendo do valor do fluxo magnético. Pior ainda, só funcionava para uma versão simplificada da equação de Schrödinger: para modelos mais realistas do potencial a prova deles colapsava. Isso punha em causa, inclusive, se as conclusões teriam realmente significado físico ou seriam mera “numerologia”, como tinham achado inicialmente os colegas físicos de Hofstadter.
Em 2019, o jovem matemático Lingrui Ge chegou à Universidade da Califórnia para integrar o grupo de pesquisa de Svetlana Jitomirskaya. O projeto era revisitar a teoria global que o Artur desenvolvera no meio tempo e usá-la para clarificar a situação do problema dos dez martinis. E o resultado foi excelente: desse modo eles obtiveram uma nova solução do problema, bem mais geral e conceitualmente mais satisfatória.
A essa altura, até os físicos já estavam convencidos. Alguns anos antes, experimentalistas da Universidade Columbia tinham observado o conjunto de Cantor em laboratório: eles mediram os níveis de energia dos elétrons de grafeno sujeito a um campo magnético e verificaram que se comportam exatamente como fora previsto por Hofstadter!
Mais um exemplo da inexplicável eficácia da matemática para descrever a realidade física…
Fonte ==> Folha SP – TEC