Ninguém precisa rezar a cartilha do Vaticano para soltar “vixi Maria” ou “Nossa Senhora” no meio do papo. São interjeições exportadas pelo catolicismo que caíram na boca do povo, tenha ele a crença que for —ou nenhuma. Ateu também dá graças a Deus por um feriado religioso que enforca a sexta-feira.
Na medida em que a placa religiosa brasileira foi se deslocando, expressões de raiz católica ganharam concorrência de outras típicas do evangelicalismo, sobretudo nas periferias: “Tá repreendido”, “misericórdia”, “ô, glória”.
São amostras prosaicas de como a vivência evangélica, mais do que profissão de fé, virou cultura popular. E temos falado tanto desse fenômeno nos últimos anos, depois de o subestimar por outros tantos, que a impressão que dá é que brota crente de tudo quanto é canto.
A funkeira Ludmila é. Bruna Marquezine também. A bancada evangélica faz culto toda quarta no Congresso.
Se hoje a Globo tem novela com protagonista serva de Deus e envia várias equipes para cobrir a Marcha para Jesus, só consigo lembrar do jornalista veterano Tonico Ferreira me contando que, em quase quatro décadas na emissora, entrevistou sete cardeais católicos, trocentos padres e bispos, e um único pastor: Jaime Wright, “mas com temas de direitos humanos”. Wright participou do ato ecumênico em memória de Vladimir Herzog, no ditatorial 1975.
Qual não foi a surpresa quando o IBGE enfim divulgou os recortes religiosos do Censo 2022 e descobrimos que a arrancada evangélica na verdade desacelerou. Esses fiéis representam 26,9% da população acima de 10 anos, enquanto se estimava algo já em torno de um terço, para chegar à maioria do país em até uma década.
Nem o demógrafo que projetou essa previsão bota fé nela agora. Talvez em 2050, recalculou. Se rolar mesmo.
Questões metodológicas podem ter custado ao bloco um ou outro ponto percentual no Censo, como a remoção de crianças da estatística (crentes são mais jovens na média) e limitações para recensear regiões periféricas (muitos deles estão justamente ali). Mas especialistas tendem a concordar que, mesmo levando tudo isso em conta, ainda assim a proporção evangélica foi mais tímida do que o esperado.
Por que havia tanta certeza de que o Brasil estava a um triz de se tornar um “Evangelistão”?
Primeiro, confiou-se demais na rota meramente matemática, como se o bloco continuasse a crescer no ritmo de antes. Faltou combinar com a sociologia. Outras variantes ficaram de fora da equação, como a reação católica (o tombo populacional nesse grupo foi feio, mas podia ser pior) e crises institucionais no segmento.
A fragmentação evangélica é ao mesmo tempo sua força e sua fraqueza. Sem um poder central como a Santa Sé, ditando o que pode e o que não pode, as igrejas conseguem se adaptar e entregar ao fiel uma fé customizada —tem até a que fez culto para pets, o que rendeu ali a piada de que um pastor-alemão pregaria no púlpito.
Essa falta de solidez, contudo, pode ter afrouxado a mobilização evangélica. Anos atrás, caravanas evangelizadoras lideradas por megaigrejas arrebatavam multidões de convertidos, por exemplo. Tanta dissidência interna desarticulou um pouco esse movimento.
Se evangélicos um dia serão a religião predominante no Brasil, só Deus sabe.
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Fonte ==> Folha SP