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Como caçadores-coletores viraram cavaleiros – 07/06/2025 – Reinaldo José Lopes

Como caçadores-coletores viraram cavaleiros - 07/06/2025 - Reinaldo José Lopes

Dizem que a história não se repete, mas às vezes pode acabar rimando, no sentido de que padrões recorrentes, gerados por condições iniciais semelhantes, por vezes acontecem. Como não desejo adentrar as implicações geopolíticas profundamente sombrias de tal possibilidade neste momento (deixo isso para meus colegas que cobrem a Casa Branca e o Kremlin), gostaria de aplicar a máxima à compreensão da história comparada de nosso próprio continente. Uma compreensão que é inseparável do retorno dos cavalos às Américas.

Não consigo tirar essa ideia da cabeça desde que iniciei a leitura do eletrizante livro “Empire of the Summer Moon” (império da lua de verão), escrito pelo jornalista americano Samuel Gwynne.

A narrativa da obra provavelmente se deleita mais do que deveria no impulso imperialista que levou os Estados Unidos do século 19 a arrancarem a porção ocidental de seu território das mãos dos povos indígenas. Mas Gwynne acerta em cheio ao mostrar como a chegada de uma única espécie de mamífero de grande porte, na hora certa e no lugar certo, conseguiu transformar algumas nações nativas em máquinas militares.

Foi o caso dos comanches do sudoeste americano, criadores do tal “império da lua de verão” (informal, é bom destacar, já que nunca houve um César comanche) nas pradarias do Texas e regiões vizinhas.

A questão é que os comanches, bem como seus vizinhos ao norte, os sioux (ou lakotas) e cheyennes, são só casos especiais de um fenômeno muito mais amplo, e é aqui que as coisas começam a rimar e chegam até as plagas brasileiras.

Recordemos primeiro que, embora existissem cavalos deste lado do Atlântico (aliás, mais de uma espécie de equinos existiam) até o fim da Era do Gelo, eles e muitos outros mamíferos de grande porte desapareceram, de uma ponta a outra do continente, com a chegada dos primeiros Homo sapiens. É muito difícil que essa chegada não tenha contribuído de alguma forma para a extinção dos bichos, ainda que fatores climáticos também possam ter contribuído para o desastre.

Seja como for, o século 16 foi palco do experimento inverso: reintroduções do cavalo, com espaço de poucas décadas entre cada evento, em muitas regiões do continente. Em tese, deveriam ter sido experimentos controlados, inclusive militarmente, já que o uso do bélico dos equinos foi um dos ingredientes secretos para a vitória acachapante dos espanhóis sobre Estados indígenas poderosos, como os dominados por astecas e incas.

Outras expedições, porém, não tiveram a mesma sorte, e o abandono de assentamentos fez com que cavalos ficassem soltos em regiões de vegetação aberta antes marginais para o povoamento indígena, como as Grandes Planícies dos EUA, os pampas e o Pantanal.

Eis, então, a mágica: povos de caçadores-coletores que nunca tinham tido peso político ou militar aprenderam a montar. Aconteceu com os comanches, mas também com os charruas gaúchos e os guaicurus pantaneiros.

Esses grupos continuaram como caçadores-coletores, mas suas máquinas de guerra de quatro patas lhes renderam o domínio sobre agricultores bem mais numerosos que ele. E impuseram ainda seguidas derrotas aos próprios europeus durante séculos, de modo que tais grupos só foram subjugados no fim do século 19, e olhe lá. Às vezes as coisas rimam.



Fonte ==> Folha SP – TEC

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