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Congresso quer ‘amarrar’ Bíblia e esquece sua complexidade – 08/11/2025 – Reinaldo José Lopes

Congresso quer 'amarrar' Bíblia e esquece sua complexidade - 08/11/2025 - Reinaldo José Lopes

“A jovem concebeu e dará à luz um filho, e o chamará pelo nome de Emanuel” ou “Eis que a virgem vai engravidar e dar à luz um filho, e o chamarão com o nome de Emanuel”: segundo a futura “versão oficial” da Bíblia no Brasil, que ilustres membros do Congresso Nacional andam querendo definir por força de lei, qual das duas versões é a correta?

Peço perdão ao leitor menos familiarizado com as Escrituras pela pegadinha, mas ocorre que as duas formas da profecia, embora muito parecidas, não são a mesma coisa. Uma foi escrita em hebraico e está no Antigo Testamento (Isaías, capítulo 7, versículo 14). A outra cita uma tradução muito posterior do texto hebraico para o grego e está no Novo Testamento (Evangelho de Mateus, capítulo 1, versículo 23). A diferença que parece ser a mais importante –além dos tempos verbais– está na interpretação do termo hebraico “almah”, que significa algo como “moça núbil, na idade de se casar” (na cultura israelita, normalmente virgem, mas nem sempre). Os antigos tradutores da Bíblia para o grego escolheram o termo “parthênos”, aí sim com o sentido mais estrito de “virgem”.

Ambas as traduções estão na mesma edição do texto bíblico em português, aliás (Bíblia Pastoral, editora Paulus, 41ª reimpressão, agosto de 2022). Ela recebeu a aprovação de dois religiosos brasileiros hoje cardeais, dom Sérgio da Rocha e dom Raymundo Damasceno, para que fosse ao prelo, e as diferenças de interpretação do termo hebraico são discutidas sem o menor constrangimento numa nota de rodapé.

Por mais que as leituras literais da Bíblia queiram tapar o Sol com a peneira, tensões e inconsistências desse tipo aparecem em muitos lugares do texto. Qual a genealogia correta de Jesus, a que aparece no capítulo 1 de Mateus ou no capítulo 3 de seu colega evangelista Lucas? (Não, a de Lucas não é a da linhagem materna –ambas desembocam em José, e são bem diferentes.)

Quem matou o gigante Golias? “David”, diz o leitor do Primeiro Livro de Samuel, capítulo 17, esquecendo que o Segundo Livro de Samuel diz que o matador do gigante teria sido Elcanã, também natural de Belém, como David. Já o Evangelho de Marcos original parece ter terminado com uma frase estranha em grego: “E não contaram nada a ninguém [sobre a ressurreição de Jesus]. Tinham medo, pois…” (as reticências dão uma ideia da sintaxe do original, embora não estejam presentes nele). As Bíblias sérias de hoje (como a citada acima) destacam que o fim acrescentado a essa passagem é uma espécie de apêndice, escrito mais tarde, por outro autor.

Enfileiro esses exemplos –e há muitos, muitos mais de onde eles saíram, acredite– não porque queira demonstrar que a Bíblia é um amontoado inútil de contradições. Sou cristão (católico) –ultimamente, copiando os evangélicos americanos, alguns dos brasileiros andam dizendo que católicos “não são cristãos”, mas isso é outra história. Meu propósito é bem diferente. Creio que toda a história das Escrituras –inclusive a história de como elas foram escritas e “canonizadas”– é justamente uma história de retraduções e reinterpretações, pela própria natureza do texto.

Sem isso, o próprio cristianismo não teria nascido, nem os judeus teriam conseguido resistir, como povo, ao cativeiro da Babilônia e a tantas outras tragédias. Aliás, sem isso, não haveria igrejas protestantes/evangélicas. Cada letra de ambos os Testamentos é viva, por mais que as queiram mortas. E o Espírito –esse continua soprando onde quer.



Fonte ==> Folha SP – TEC

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