Reduzir a humanidade a uma divisão binária entre homens e mulheres não corresponde à realidade científica. É o que diz o bioantropólogo norte-americano Agustin Fuentes.
“Se você quer dizer ‘eu odeio pessoas gays’, admita que é o seu ódio, não diga que a biologia sustenta o seu argumento”, afirma o pesquisador, que é doutor em antropologia pela Universidade da Califórnia em Berkeley.
Fuentes acaba de lançar nos Estados Unidos o livro “Sex Is a Spectrum: The Biological Limits of the Binary” (Sexo é um espectro: os limites biológicos do binário).
O bioantropólogo da Universidade de Princeton (EUA) também conta como encontrou no trabalho com cientistas indígenas brasileiros eco para o que está no cerne de seus mais de trinta anos de pesquisas realizadas em 15 países.
“Algo que nós, na tradição ocidental, tivemos retirado de nossa formação é a ideia das relações entre pessoas, animais e plantas. As relações são a dinâmica do mundo”, diz o professor afiliado ao Brazil Lab, centro de estudos da universidade em Nova Jersey, onde leciona no Departamento de Antropologia.
No livro, você diz que o conceito de sexo biológico é impreciso. Por quê?
É importante que fique claro o que exatamente queremos dizer quando falamos em sexo biológico. Porque, na maioria das vezes, as pessoas não estão falando sobre sexo biológico, mas sobre gêneros, ou seja, homem e mulher.
O que, consequentemente, leva a uma divisão binária…
Sim. Mas o que é ser binário? É como os números um e zero: ambos são números, mas completamente diferentes. Eles não se sobrepõem. Nós, humanos, somos diferentes, somos mais como uma distribuição da biologia, da matéria orgânica que nos compõe. Então, existem agrupamentos típicos nessa distribuição, os quais chamamos de masculino e feminino, mas há também uma variação não apenas entre, mas dentro desses agrupamentos. Portanto, é melhor pensar não de forma binária, mas de uma maneira que nos permita perguntar: o que se sobrepõe entre homens e mulheres?
Qual seria então a maneira mais apropriada de tratar a questão?
É importante deixar claro que vamos seguir utilizando os termos homem e mulher, menino e menina. Mas note que ao passo que chamamos os outros animais pelo sexo —macho e fêmea—, quando se trata de humanos nós dizemos homem e mulher. Mas estes são termos complexos, pois não envolvem apenas a biologia, envolvem gênero, sociedade, tudo isso. Ou seja, quando falarmos homem e mulher, temos um termo biocultural. E aqui eu recorro à minha colega Sarah Richardson, de Harvard, para dizer que é importante saber qual é exatamente a pergunta que está sendo feita. Se querem saber quem produz esperma ou óvulo, então a pergunta correta a se fazer é sobre os detalhes da produção dos gametas, o trato reprodutivo. Se alguém quer saber o quão bem alguém vai se sair nos esportes, a pergunta não deve ser sobre se esse alguém é menino ou menina, mas qual é o tamanho dessa pessoa, como são os músculos dela.
Mas finalmente respondendo à sua pergunta: a melhor forma de falar sobre sexo é o que se chama sexo 3G: genitália, gônadas (testículos e ovários) e genes, porque é isso o que normalmente queremos dizer.
Mas a perspectiva de sexo 3G não é também incompleta?
Sim, é uma categoria também incompleta. Mas é uma descrição. É boa ciência, porque está descrevendo aquilo que realmente estamos falando, ou seja, agrupamento típico, três coisas que normalmente aparecem juntas dessa forma. Mas não podemos deixar de perguntar: e todos aqueles humanos, cerca de 80 milhões de pessoas, que não se encaixam no 3G típico? Então, meu ponto aqui não é dizer que não existem machos e fêmeas, ou que homens e mulheres são a mesma coisa. Mas é indispensável perguntar sobre a variação. Como ela realmente aparece quando falamos sobre corpos e vidas humanas?
Quais são as implicações quando nos movemos do conceito de sexo biológico para o sexo 3G?
Sexo biológico é apenas uma coisa simples: olhar para a genitália —se tem pênis ou clitóris— e tentar deduzir como essa pessoa vai ser quando crescer, como vai se comportar, por quem vai se atrair. Funciona na maioria das vezes, mas nem sempre. É apenas uma abreviação para o 3G, que é uma avaliação científica que pergunta: quais as variações do corpo?
Nesse sentido, o Brasil é um caso muito interessante, porque há uma enorme diversidade de sexualidades, corpos, constituições e uma história realmente complexa de reflexão sobre isso.
Todo mundo no Brasil sabe que não dá para simplesmente olhar para alguém e saber quem essa pessoa é. Portanto, em vez de assumir que podemos olhar para um bebê quando ele nasce e imediatamente saber qual será sua trajetória, se passarmos a compreender melhor que há muita variação, isso será melhor e mais saudável.
No livro, você conta a história de uma descoberta científica que ilustra tudo isso.
Há cerca de 5.000 anos, uma comunidade na região centro-leste da Península Ibérica, próximo ao que hoje é Valência, na Espanha, enterrou um indivíduo com marfim e diversos materiais raros, bens de altíssimo prestígio. Quando arqueólogos encontraram os restos mortais, viram todo esse prestígio e pensaram: “deve ter sido um grande líder”. Depois, olharam os ossos da pélvis e disseram: “Isso parece de um homem.” Então concluíram: “este foi um grande líder, um homem que comandava, alguém muito importante.”
Algum tempo depois, a nossa tecnologia para analisar ossos melhorou. Então eles rasparam um pouco dos dentes e fizeram um novo teste e o que se descobriu foi que esse indivíduo era, na verdade, XX, ou seja, uma mulher. E nós, os pesquisadores, presumimos que fosse um homem por causa de todos aqueles objetos.
Qual é a lição aqui? Você não pode simplesmente olhar para um corpo ou para um contexto cultural e assumir que sabe o gênero, a vida ou a experiência daquele indivíduo. Os seres humanos são confusos e complexos —e isso não é algo ruim.
Como o seu trabalho dialoga com a obra de autores como Simone de Beauvoir, Michel Foucault e Judith Butler, por exemplo?
Eu dou bastante crédito a Butler por realmente ter impulsionado a ideia de gênero como poder, como ação. Foucault também fez esse apontamento. Mas eu adoro Simone de Beauvoir e vou citá-la aqui. “Não se nasce mulher: torna-se mulher”. Ou seja, alguém é feito nessa categoria, nesse gênero. Nós somos bioculturais. Se você pegar um grupo de diferentes seres humanos adultos e retirar seus corações ou seus rins, você não conseguirá dizer se são de um homem ou de uma mulher. Esses órgãos vão parecer diferentes, sim, mas por causa das vidas que viveram, o que comeram, que tipo de coisas colocaram em seus corpos. Mesmo que Foucault e Butler não tenham pensado muito sobre biologia de fato, se você olhar para seus argumentos filosóficos, eles também estão concordando que o mundo nos molda ao mesmo tempo em que nós reagimos e moldamos o mundo.
Em discussões sobre gênero, a religião costuma aparecer como base. Mas há quem garanta usar argumentos científicos em seus ataques contra gays. Dizer que ser gay é “antinatural” faz algum sentido do ponto de vista da ciência?
Não faz. Eu escrevi este livro porque as pessoas deveriam conhecer a biologia básica. Uma vez que você entende isso, podemos debater. O problema é que muitos conservadores dizem: “a biologia me respalda, por isso devemos proibir os gays”. Mas não há nada, biologicamente falando, que diga que ser gay não é parte da experiência humana. Então, se você quer dizer “eu odeio pessoas gays”, admita que é o seu ódio. Não diga que a biologia sustenta o seu argumento.
Essa é a razão te levou a escrever esse livro?
Eu escrevi este livro, que é curto e de fácil acesso, porque percebi que a maioria das pessoas não tem a compreensão básica sobre corpos, biologia e cultura para poder ter essa conversa. Eu não quero que ninguém necessariamente concorde comigo. Quero que entendam quais são as noções básicas para que possamos então ter uma conversa produtiva.
Você tem trabalhado com cientistas indígenas brasileiros. Como os conhecimentos produzidos por eles contribuem com o que chamamos de “ciência ocidental”?
Algo que nós, na tradição ocidental, não vemos, ou tivemos retirado de nossa formação, é a ideia das relações, entre pessoas, animais e plantas. As relações são a dinâmica do mundo, a forma como ele funciona.
Trabalhando com nossos maravilhosos colegas indígenas através do Brasil Lab, uma das coisas que me impressiona —e que considero necessária para a ciência ocidental— é a possibilidade de abrir um pouco mais as portas e compreender que existem muitas formas de saber, e que algumas dessas formas de saber podem enriquecer e expandir o trabalho tradicional da ciência ocidental, tornando-o uma ciência melhor.
Fonte ==> Folha SP – TEC