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É possível editar um gene sob medida? – 13/06/2025 – Ciência Fundamental

A imagem apresenta uma ilustração artística do sistema circulatório humano, onde o coração e os pulmões são representados de forma estilizada. Vários carros coloridos estão desenhados como se estivessem circulando por veias e artérias, simbolizando o fluxo sanguíneo. O fundo é escuro, destacando os elementos coloridos da composição.

KJ Muldoon nasceu na Filadélfia, há dez meses. Os médicos logo detectaram sintomas preocupantes, como irritabilidade após se alimentar e pouca resposta a estímulos. Uma investigação revelou deficiência de uma enzima presente em células do fígado, a carbamoil fosfato sintetase 1 (CPS1), sem a qual a amônia proveniente das proteínas ingeridas não se converte em ureia. Não podendo ser eliminada na urina, a ureia se acumula no sangue, sendo tóxica sobretudo para o cérebro.

A deficiência de CPS1 atinge uma pessoa a cada 1 milhão. A forma neonatal é a mais letal e pode levar o indivíduo a óbito em poucos dias ou anos, a depender da resposta ao tratamento. Inicialmente, prescrevem-se medicamentos para reduzir os níveis de amônia e uma dieta restrita em proteínas, mas em geral é necessário um transplante de fígado. Diante da severidade da condição de KJ, os profissionais propuseram à família um tratamento inédito, ainda em caráter experimental: uma terapia gênica personalizada para corrigir especificamente a mutação no gene responsável pela enzima CPS1.

Há poucos anos, terapias gênicas começaram a ser aplicadas tendo em vista a correção de genes defeituosos presentes em certas doenças, como a anemia falciforme, alguns tipos de linfomas e leucemias, e a atrofia muscular espinhal (AME). Contudo, um dos desafios dessas terapias é atender a grande diversidade de doenças extremamente raras e com mutações específicas em diferentes indivíduos. Os medicamentos são custosos e demorados.

Na tentativa de transpor essa limitação, em seis meses uma equipe com dezenas de pesquisadores da área acadêmica e da indústria farmacêutica conseguiu elaborar uma terapia para KJ baseada na edição de bases do DNA.

A terapia foi administrada em três etapas, uma dose a cada mês. Após a primeira, KJ conseguiu consumir a quantidade de proteínas recomendada para sua idade, continuando a receber medicamentos para controlar a amônia. Aos dez meses, o bebê já atinge todos os marcos de desenvolvimento esperado e recebeu alta na primeira semana de junho. Por ser personalizado, é bem provável que seu tratamento nunca venha a ser administrado a outro indivíduo, mas o desenvolvimento da técnica abre a possibilidade de tratar outras doenças extremamente raras.

Kiran Musunuru, professor da Universidade da Pensilvânia e primeiro autor da pesquisa, compara a terapia a um GPS, capaz de alterar a direção a partir das coordenadas que lhe são fornecidas. No entanto, ressalte-se que a terapia gênica de KJ até o momento não caracterizou uma cura, já que o bebê ainda necessita de medicamentos, mas foi fundamental para garantir sua vida e seu pleno desenvolvimento, além de evitar um transplante. KJ continuará sendo acompanhado e poderá receber mais doses do tratamento ao longo dos anos.

Além dessa nova técnica, outros protocolos já foram testados para crianças com doenças raras, como ocorreu com Mila, uma garota estadunidense diagnosticada com doença de Battle, uma desordem genética progressiva e fatal. Mila foi tratada aos oito anos pela equipe de Timothy Yu, neurogeneticista de Harvard, com uma terapia sob medida direcionada a seu RNA (a molécula que faz a leitura do código presente no DNA para a produção de proteínas).

Ainda que a doença estivesse num estágio bastante avançado, Mila fez rápidos progressos, mas após três anos não resistiu. Sua mãe criou a Mila’s Miracle Foundation, que visa sensibilizar profissionais para o diagnóstico precoce de doenças genéticas raras e projetar um modelo escalável e acessível de terapias gênicas personalizadas.

Também estão em testes clínicos protocolos que utilizam vírus para inserir uma versão corrigida de um gene em um ponto do DNA. Além disso, estudos recentes em modelos animais mostraram a possibilidade de realizar terapias gênicas em recém-nascidos com doenças hematológicas e do metabolismo, de forma pouco invasiva.

Todos esses avanços demonstram o enorme potencial para o tratamento de diversas condições genéticas, ainda que nem todas as doenças possam ser tratadas com tais técnicas e que mais testes sejam necessários. Mas um dos entraves ainda é o financiamento.

Os altos custos e a complexidade das novas tecnologias demandam parcerias privadas e robusto aporte governamental, como foi o caso da terapia de KJ, que obteve 14 milhões de dólares do Instituto Nacional de Saúde (NIH) dos Estados Unidos em 2024. Mudanças nas condições econômicas e nas prioridades de financiamento à pesquisa podem impactar o futuro da terapia gênica no mundo e o acesso de bebês a esses promissores tratamentos.

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Rossana Colla Soletti é doutora em ciências morfológicas e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

O blog Ciência Fundamental é editado pelo Serrapilheira, um instituto privado, sem fins lucrativos, de apoio à ciência no Brasil. Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar as novidades do instituto e do blog.



Fonte ==> Folha SP – TEC

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