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Elis Regina não morreu – 23/03/2025 – Becky S. Korich

Elis Regina canta ao microfone em show de Montreux

Nenhuma palavra saía indiferente da boca de Elis Regina. Nada fica neutro, nada fica morno, nada é pouco do que vem da maior intérprete de todos os tempos. Nada escapava a Elis, nenhuma nota, nenhuma pausa, nenhum verso. E a vida também não tinha como escapar. Elis nasceu em março, no mês em que as águas fecham o verão, há oitenta anos, completados na última segunda-feira, 17. E nunca saiu de cena.

Elis “preparou a própria eternidade”, como definiu o crítico musical Jotabê Medeiros. “Elis não quis ser Janis Joplin, não quis ser Ella Fitzgerald, não quis ser Billie Holiday. Ela quis mais, e conseguiu”. Deixou o seu próprio legado. E conseguiu mais: redefiniu a história da MPB.

“A biografia de Elis não tem fim”, Julio Maria escreveu na introdução da nova edição de “Nada Será Como Antes”. Sua história não acabou, sua obra tem sempre algo a se revelar e se desvendar —nem que seja algo sobre nós mesmos. Por isso, Elis continua aqui, nos virando pelo avesso, com sua voz e personalidade, “se jogando em penhascos” —como descreve Maria— e nos levando junto para os nossos penhascos particulares que não temos coragem de enfrentar.

Elis saboreava cada letra, rasgava as palavras com os dentes, como quem arranca um pedaço da vida e o transforma em música —ou como quem arranca um pedaço de música e transforma em vida. Sedenta, extraía o sumo das palavras e das melodias, bebia cada sílaba até a última gota. Assim era a sua música, assim era a sua vida. Vivia como cantava: com fúria e fome de vida.

Elis: plural. Elis era várias. Uma orquestra em si mesma, onde sua voz eram os instrumentos. Dentro de seu 1,53 m cabiam muitas: a incendiária, a melancólica, a debochada, a mãe, a insegura, a ousada, a apaixonada. Só não sobrava espaço para composições menores. Ela não só sabia maravilhosamente como cantar, mas também o que cantar. Escolhia seu repertório com rigor. Sem se prender ao estilo, era exigente quanto à estética musical e à qualidade poética. Depois disso, brincava com a música e fazia o que queria dela. Gravou o que quis, como quis —e como queríamos.

Elis não tinha medo de se transformar. Quando era questionada por algum jornalista sobre alguma contradição, ela sorria e respondia: “Mudei, dá licença?”. Era essa licença que lhe credenciava como uma mulher aberta e revolucionária, livre para fazer suas escolhas musicais e pessoais.

Tinha gestos exuberantes, um cabelo diferente, usava vestidos sem mangas —para dar asas aos seus braços. Rodopiava e agitava os braços até alçar voo no palco. Quando a vemos cantar de olhos fechados, somos convidados a olhar para dentro de nós mesmos. Quando a ouvimos sussurrar suas canções, escutamos vozes que gritam dentro de nós. E sempre nos faz cantar juntos que viver é melhor que sonhar.

Elis é uma paixão antiga, incondicional. Depois dela, não apareceu mais ninguém. Fez parte da minha infância, saindo da vitrola da casa dos meus pais, quando eu ainda ouvia “Nana Neném”. Nunca mais me largou, nunca saiu de mim. Me tornei sua cúmplice, sua refém. Às vezes dói de tão fundo, de tão lindo. Porque Elis não é apenas ouvida, não é apenas vista —ela é sentida. Essa é a Elis que jamais partirá. A música faz milagres.

Para cada vez que a gente se perguntar como alguém conseguia cantar daquele jeito, a resposta sempre será a mesma: porque é ela, porque é Elis.



Fonte ==> Folha SP

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