A relação entre fisco e contribuinte envolve uma dualidade: de um lado, o poder estatal de exigir tributos; de outro, a necessidade de uma relação sustentável e cooperativa. Com esse foco, o Estado de São Paulo instituiu o Programa “Nos Conformes” (Lei Complementar nº 1.320/2018), que busca construir um ambiente de confiança mútua entre contribuintes e administração tributária.
O programa, elaborado após debates do governo estadual com a sociedade e instituições de pesquisa e ensino, como a FGV, baseia-se em princípios como os da boa-fé, segurança jurídica e concorrência leal entre os agentes econômicos. Uma de suas inovações é a classificação dos contribuintes por perfil de risco conforme o comportamento fiscal, com critérios objetivos.
Para que os objetivos do Programa sejam atendidos é evidente que, a par dos incentivos à conformidade fiscal, devem ser previstas medidas que desestimulem e reprimam condutas voltadas ao enriquecimento por meio do não pagamento de impostos. Por isso, a Lei 1.320/2018 traz um rol exemplificativo de regimes especiais voltados a induzir os devedores contumazes de ICMS ao cumprimento das obrigações.
Nesse contexto, a Secretaria da Fazenda e Planejamento deu um passo importante de modernização na cobrança administrativa, com a implementação de um acompanhamento qualificado dos devedores contumazes com foco na mudança de seu comportamento.
Durante o acompanhamento, as empresas selecionadas recebem alertas e orientações para que cumpram as suas obrigações tributárias. Caso persistam as irregularidades, aplica-se o regime especial mais adequado à situação específica da empresa. As medidas consideram o contexto do endividamento, com base em diversos indicadores comparativos em relação a outras empresas do mesmo setor.
Responsável por realizar a defesa das medidas fiscalizatórias questionadas judicialmente, a Procuradoria-Geral do Estado constata que o Poder Judiciário tem confirmado a legalidade dos regimes especiais impostos aos devedores contumazes recalcitrantes.
Uma pesquisa simples e de acesso público realizada no portal do Tribunal de Justiça de São Paulo aponta que, nos últimos 18 meses, foram proferidos 26 acórdãos (decisões colegiadas) envolvendo a legalidade de regimes especiais e em apenas três deles a medida foi afastada pelo Poder Judiciário, um índice de quase 90% de decisões favoráveis ao poder público.
FolhaJus
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Fato é que essa mudança na forma de acompanhar e cobrar os devedores contumazes gerou um impacto significativo nos valores recuperados pela Secretaria da Fazenda. Em 2024, essa atuação diferenciada foi responsável pela recuperação de R$ 1,1 bilhão —um aumento de 330% em relação ao modelo anterior.
Por outro lado, apesar dos diversos mecanismos disponíveis para incentivar a regularização fiscal, há contribuintes inadimplentes que, de forma deliberada, optam por se financiar às custas do Estado, deixando de recolher tributos. Trata-se de uma inadimplência muitas vezes planejada como estratégia de negócio, o que exige uma resposta eficaz do Poder Público.
Na década de 1960, o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que são inconstitucionais as restrições administrativas que dificultam ou impedem o exercício de atividade profissional com o objetivo de forçar o pagamento de tributos —as chamadas sanções políticas (Súmulas 70, 323 e 547).
Com o tempo, a jurisprudência evoluiu para reconhecer que não há sanção política quando as restrições à atividade econômica visam combater estruturas empresariais que se beneficiam da inadimplência tributária sistemática e consciente como vantagem competitiva (ADI 173). Em situações mais graves, o STF considerou compatível com a Constituição até mesmo a previsão legal de cancelamento da autorização de funcionamento de empresas que descumprem obrigações tributárias (RE 550.769 e ADI 3952).
No campo criminal, o STF decidiu, em dezembro de 2019, que configura crime tributário a conduta do contribuinte que, “de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço”. Segundo o ministro Luís Roberto Barroso, relator do caso, “não se trata de criminalização da inadimplência, mas da apropriação indébita. Estamos enfrentando um comportamento empresarial ilegítimo” (RHC 163.335).
Nesse cenário, o Estado de São Paulo tem se estruturado para combater práticas desleais no mercado. Em agosto de 2020, foi criado o Comitê Interinstitucional de Recuperação de Ativos (CIRA/SP), composto pelo Ministério Público, Procuradoria-Geral do Estado e Secretaria da Fazenda e Planejamento, uma política pública de atuação integrada que tem gerado impacto positivo na arrecadação tributária e na alteração do comportamento de sonegadores contumazes.
Embora assegurada pela Constituição Federal, a liberdade econômica não pode ser utilizada como salvo-conduto impeditivo da atuação fiscalizatória do Estado em face do não recolhimento planejado e sistemático dos tributos.
Fonte ==> Folha SP