Elas estão de volta. Deborah Vance, a comediante mais egocêntrica dos EUA, e sua roteirista politicamente correta Ava Daniels não dão sinais de cansaço na quarta temporada de “Hacks”, que já cravou seu lugar entre as melhores séries de comédia da década.
E por que “Hacks” sobrevive? Porque Deborah e Ava se amam e se odeiam na mesma proporção e agora enfrentam desafios inéditos. A primeira acabou de ganhar seu primeiro programa na TV, na linha do “Jô Soares Onze e Meia”; e Ava se tornou uma figura pública, não tendo a menor ideia de como lidar com a fama.
[Atenção: spoiler da temporada anterior]
A 3ª temporada terminou com um gancho supremo: Ava só se tornou a redatora-chefe do novo programa depois de chantagear a diva do humor, que não confiava nela para o cargo mesmo após quatro anos de trabalho juntas. A nova temporada, como se diz hoje em dia, começa na força do ódio. Mas sabemos que o jogo ainda vai virar muitas vezes.
Talvez seja só a empolgação falando, mas Deborah é um dos personagens de TV mais bem escritos dos últimos anos. É cheia de defeitos: egocêntrica, vaidosa, pisa na cabeça de quem for para se manter nos holofotes, destrata os funcionários que estão há mais de 20 anos com ela – e no entanto é puro carisma, e adoraríamos ter a chance de jantar com ela uma vez na vida.
Lembra um pouco o Walter White de “Breaking Bad” ou o Tony de “Família Soprano”, que não cansavam de tomar atitudes condenáveis sem nunca perder o afeto do espectador.
“Hacks”, uma série que estreou em maio de 2021 e nos embalou com um humor providencial nos tempos sinistros da pandemia, ainda tem dois grandes méritos. O primeiro: ser uma série de comédia estrelada por duas mulheres, fato ainda raro na TV americana, que já produziu pérolas como “Mary Tyler Moore” (1970-1977) e “Super Gatas” (1985-1992), que fez a alegria de muita gente nos fins de tarde da Globo antes de estrear “Malhação”.
O segundo mérito: a relação de gata e rato entre Deborah e Ava é também a história do conflito do velho humor, aquele que reinou até o começo dos anos 2000 e não tinha o menor problema em zoar negros, LGBTQIA+s, obesos e principalmente mulheres; e a nova cultura, que impõem novos limites para se fazer graça.
Quando somamos esses novos desafios à polarização política, que não permite mais que um humorístico na TV aberta faça humor da figura do presidente da República sem despertar ódios de um lado ou do outro, dá pra entender por que a Globo está há cinco anos sem humor no horário nobre.
Mesmo humorísticos que entraram para a história como amados sem restrições, como “TV Pirata”, “Casseta & Planeta Urgente” e “A Escolinha do Professor Raimundo”, hoje tomariam pedradas diariamente nas redes sociais.
Fonte ==> Folha SP