Desde abril de 2024, tenho me ocupado cada vez mais da leitura de Hannah Arendt na tentativa de formular um novo projeto de pesquisa sobre a relação entre literatura e filosofia.
Arendt, como já comentei aqui há algum tempo, era uma exímia leitora e contadora de histórias. Isso é algo que podemos constatar não somente por meio de referências literárias que ela usa em seus textos, mas, principalmente, através da maneira como ela apresenta as suas ideias de modo ensaístico. Isto é, por meio de um gênero literário profundamente marcado pela experimentação, no qual as certezas cedem espaço ao engenho e ao questionamento.
É neste sentido que, ao refletir sobre a sua própria trajetória, Arendt ressalta: “Tudo o que fiz e tudo o que escrevi é uma tentativa. Acredito que todo o pensar (…) tem a marca distintiva de ser uma tentativa”.
Quem aborda com maestria a relação entre o ensaio enquanto estilo literário e a atividade filosófica é o professor Eduardo Cesar Maia (UFPE), que se dedica ao estudo do tema a partir da leitura de José Ortega y Gasset e da tradição do pensamento latino. Segundo Maia, em autores como Ortega y Gasset, o estilo nunca é simplesmente uma questão decorativa, mas uma escolha deliberada, intimamente relacionada ao tipo de atitude filosófica que se pretende cultivar.
No caso de Arendt, a opção da autora por um estilo mais ensaístico, ilustrativo das suas tentativas de compreensão de mundo, permite que ela exercite com desenvoltura o que costumava chamar de pensar sem corrimão.
Arendt argumenta que depois de tudo o que se passou com a política no século 20, principalmente com relação ao surgimento de regimes totalitários, já não podemos mais contar com o auxílio do passado para tentarmos compreender a nossa época: “Precisamos começar a pensar como se ninguém houvesse pensado antes, e depois começar a aprender com os outros”.
Tenho refletido bastante sobre o que realmente significa pensar sem contarmos com o auxílio do passado ou da tradição. Pois, apesar dessa sua insistência, a própria Arendt quase sempre faz referência a filósofos, escritores e poetas de outros séculos em uma tentativa de esclarecer suas próprias ideias.
Aqui, por exemplo, ao comentar sobre significado da expressão pensar sem corrimão, ela recorre a Alexis de Tocqueville (1805-1859): “Esse assunto de que a tradição foi quebrada, de que o fio de Ariadne foi cortado, bem, não é algo tão novo quanto eu faço parecer. Afinal, foi Tocqueville quem disse que ‘quando o passado cessa de lançar luz sobre o futuro, o espírito do homem vaga na escuridão’”.
Já em outro texto, Arendt volta a ressaltar que: “Olhar para o passado a fim de encontrar analogias para resolver nossos problemas atuais é, na minha opinião, um erro mitológico”.
Quem, como eu, somente agora começou a se envolver mais seriamente com a obra de Arendt, talvez compartilhe da minha dúvida ao contrastar essas duas citações. Afinal, como pode alguém que cita Tocqueville argumentar que o passado já não é imperativo?
Até o momento, a única maneira que encontrei de resolver essa questão foi tentando distinguir entre duas formas de nos relacionarmos com o passado. A primeira, enxerga no passado uma espécie de autoridade à qual podemos recorrer para justificar o presente. Ela se baseia na ideia de precedente, ou seja, de que algo é o que é porque no passado também foi daquele jeito.
Enquanto a segunda sonda o passado em busca de exemplos que nos permitem refletir sobre as nossas circunstâncias, ampliando a nossa perspectiva sobre um determinado evento, sem, com isso, exercer qualquer autoridade dogmática sobre a nossa capacidade de apreender o presente e julgá-lo por conta própria.
Talvez seja justamente isso que Arendt entenda por pensar poeticamente e que também poderíamos chamar de pensar de modo ensaístico. Algo que nem sempre conseguimos fazer, mas que, nem por isso, devemos abrir mão de tentar.
Fonte ==> Folha SP