O sítio arqueológico de Kuntillet Ajrud, um ponto de parada para as caravanas que atravessavam o deserto do Sinai na Antiguidade, é onde retomamos nossa série sobre as origens do Deus monoteísta judaico, cristão e islâmico. É ali que encontramos uma menção ao nome dessa divindade, Iahweh, numa inscrição completamente inesperada para quem só o conhece pela Bíblia. Segundo uma das interpretações possíveis desse texto, Deus é invocado junto com sua “mulher”, a antiga deusa cananeia Asherah (ou Asserá, na forma aportuguesada).
Em dois textos curtos diferentes, escritos com a versão original do alfabeto hebraico por volta do ano 800 a.C., aparecem as frases “Abençoados sois por Iahweh de Samaria e sua Asherah” e “Eu te abençoo por Iahweh de Teman e sua Asherah”.
As frases foram escritas em grandes vasilhas de cerâmica do tipo “pithos”, usadas para armazenar líquidos ou grãos. Junto com um dos textos vemos diversos desenhos, entre os quais duas figuras de corpo humano e cabeça vagamente bovina. Seriam representações de Iahweh/Javé e Asherah/Asserá?
OK, vamos retroceder um instante só para deixar claro porque as frases são tão inauditas. O nome de Asherah é citado diversas vezes na Bíblia hebraica/Antigo Testamento, assim como o de outros antigos deuses “pagãos” cananeus, supostamente anteriores ao povo de Israel.
O texto bíblico critica os israelitas por abandonarem o culto a Iahweh em favor desses deuses, ou por misturarem a fé “verdadeira” com a antiga religião “idólatra”. Nesses casos, a palavra hebraica “asherah” também pode significar um objeto sagrado, um poste de madeira que seria uma espécie de árvore sacra estilizada, podendo corresponder ou não à figura da deusa.
A coisa verdadeiramente esquisita aqui é dar de cara com uma menção aparente à deusa na qual ela é retratada não como rival de Iahweh, mas como sua parceira. É isso que não se vê em nenhum trecho do texto bíblico. Por outro lado, o papel de consorte do deus supremo é justamente o que se espera da figura de Asherah que conhecemos a partir dos textos da antiga cidade de Ugarit, sempre citados nesta série.
Ainda há, porém, outra complicação. O hebraico das frases é peculiar porque “cola” o que seria equivalente a um pronome possessivo do português no nome próprio Asherah (traduzido acima como “sua Asherah”). Em hebraico bíblico, essa construção se usa para objetos, não para nomes de pessoas.
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Isso levou alguns especialistas a interpretar a frase como se ela se referisse não a Asherah com letra maiúscula, mas sim “à asherah” (substantivo comum, letra minúscula) pertence a Iahweh. Ou seja, aqui, seria uma descrição do objeto cúltico, do poste de madeira usado na adoração a Iahweh, e não a ele junto com uma esposa divina. Mal comparando, e para usar analogias 100% católicas, seria como dizer, “Que as Sete Chagas de Cristo te salvem”, “Que Nossa Senhora te cubra com seu manto” ou coisa que o valha.
Ainda que essa interpretação seja a correta, entretanto, estaríamos falando de, no mínimo, mais um capítulo do processo pelo qual os antigos elementos da religião politeísta cananeia são incorporados pelo culto a Iahweh e transformados por ele. De todo modo, a religião “oficial” bíblica acabaria condenando a ideia de continuar usando a antiga árvore sagrada de Asherah.
Os debates devem continuar por um bom tempo enquanto novas evidências não vêm à tona, mas estamos preparados para dar o próximo passo: entender quais os fatores que enfim conduziram a antiga religião israelita rumo ao monoteísmo “puro”. Eis o tema dos nossos dois próximos capítulos. Até lá!
Fonte ==> Folha SP – TEC