Imagino que quase todo mundo já tenha precisado enfrentar prazos fora da realidade no trabalho, mas a falta de noção (ou coisa pior) do Segundo Reinado de Trump ultrapassou todas as barreiras do concebível nesse quesito. Afinal de contas, o atual secretário de Saúde dos EUA, Robert Francis Kennedy Jr., afirmou que definiria de uma vez por todas a(s) causa(s) do autismo, e como evitá-las, até setembro deste ano, liberando então essa receita mágica para o público. Assim, sem mais nem menos, “como quem chupa um Chicabon”, diria Nelson Rodrigues.
Como já estou velho demais para não chamar as coisas pelo nome, registro aqui que, na melhor das hipóteses, “RFK Jr.” é um lunático. As chances de que a suposta grande revelação de setembro de fato elucide e resolva o que ele andou chamando de “holocausto do autismo” tendem a zero. Mas é claro que essas afirmações, por mais que lancem fora algo do meu vitriol contra “nepobabies” negacionistas, não explicam muita coisa. Vamos, portanto, aos porquês.
Em primeiro lugar, não é por acaso que nenhum –repito, nenhum– dos problemas graves de saúde mental, e também da maioria dos distúrbios de desenvolvimento do cérebro, foi atribuído até hoje a um conjunto simples de causas.
Sim, existem os casos claramente ligados a uma alteração genética específica, como a síndrome de Down, mas é bem mais comum que eles alterem tanto o lado cognitivo e comportamental quanto outros aspectos do organismo, justamente pela natureza sistêmica das consequências trazidas por alterações no DNA –afinal, é raro que a molécula cuja “receita” está no material genético seja importante apenas para o sistema nervoso.
Excetuados esses exemplos, problemas como depressão, esquizofrenia, transtorno bipolar e, claro, o próprio autismo se manifestam a partir de uma interação complexa entre possíveis vulnerabilidades de fundo hereditário e fatores ambientais que raramente se repetem de indivíduo para indivíduo.
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Há boas razões para acreditar que, ainda que seja conceitualmente útil agrupar os sintomas que ocorrem juntos nesses casos e dar a eles um nome só –o de “depressão”, por exemplo–, na verdade existem múltiplas “depressões”, com natureza distinta. Isso explicaria, é claro, porque mesmo os melhores medicamentos deixam alguns pacientes muito distantes de uma melhora significativa.
O caso do autismo provavelmente é parecido, mesmo porque o que às vezes enxergamos como um aumento vertiginoso dos casos, ao longo das últimas décadas, também está ligado a mudanças nos critérios de diagnóstico, na atenção dada por médicos e pelo público ao problema, na disponibilidade de testes e acompanhamento etc. Além disso, o que enxergamos hoje como o espectro autista engloba pessoas que, por seu grau relativamente alto de autonomia cognitiva e social, não seriam enquadradas na definição mais estrita do passado.
Resumo da ópera: o doidinho de estimação de Trump quer usar uma varinha mágica para resolver um problema muito mais complexo do que sonha o seu vão conspiracionismo. Gostaria muito de que isso não seja só mais uma desculpa para dificultar o acesso a vacinas, mas isso talvez seja esperar demais de gente como essa. E o pior dos dilemas, claro, é o que fazer se essa moda pegar.
Fonte ==> Folha SP – TEC