O bar Gambrinus, na zona portuária do Recife, estava cheio. Um marinheiro americano, louco de paixão, decidiu tocar “Maria Bethânia”, canção de Capiba, dezenas de vezes consecutivas. A voz viril de Nelson Gonçalves, repetida à exaustão na mesma melodia e letra, irritou os demais, que surraram o marinheiro e quebraram a pobre eletrola.
Nelson Gonçalves, segundo maior vendedor de discos no país, atrás apenas de Roberto Carlos, era muito querido, mas não a esse custo. A beleza triste da canção havia quebrado o ritmo das risadas ébrias no bar. Em outra parte, Caetano Veloso, que adorava a música, insistiu para que sua mãe batizasse a irmã de Maria Bethânia.
Alheio a tudo isso, o cantor Gonçalves sofreu o diabo antes de ser gravado. Foi recusado inúmeras vezes em rádios, shows de calouros e gravadoras. Ary Barroso disse a ele para voltar a ser garçom e pugilista, que era melhor –Nelson havia sido campeão paulista com as luvas de boxe. A gagueira, que lhe rendeu muito bullying na escola e o apelido de Metralha, não ajudava.
Enquanto a fama não sorria, cantava fados com o pai, imigrante português, que por sua vez tocava violino. Cantava também no bar do irmão, onde era garçom. Foi ainda pedreiro e faz-tudo. Até que, em 1941, aos 22 anos, entrou em estúdio para registrar seu primeiro 78 rotações. O sucesso veio rápido.
Sua interpretação encorpada e sentimental servia a muitas canções de fossa, as quais vinham afogadas em bebida. O bar, a taverna, o cabaré eram os cenários naturais, redutos gregos de tragédias minúsculas. “Um quebra-luz, um som qualquer/ No ar, perfume de mulher/ No salão gira a lembrança/ Ilusão, bebida e dança”. Adiante, “o garçom enche a taça/ solidão, cinza e fumaça.” O tango “Cabaré (piano bar)”, com letra de Paulo César Pinheiro, dava o tom.
A solidão, personagem frequente, persistia em torturar no samba-canção “Indulto”, de Adelino Moreira, que viaja por um “oceano de bebidas”. Ali, “qualquer taverna é um lar” e “qualquer bebida serve para esquecer/ um amor que se foi ao alvorecer.”
O barco da tristeza navega de novo num mar etílico em “Hoje quem paga sou eu”, de Herivelto Martins e David Nasser. É outro tango —este, com certo humor. “Sou apenas uma sombra que mergulha/ no oceano de bebida, o seu passado/ faço parte dessa estranha confraria/ do vermuth (sic), do conhaque e do traçado”.
Em entrevista à Folha, o crooner disse que não bebia, o que, claro, não era verdade. Se Nelson mentia nesse quesito, admitia estranhamente o consumo de cocaína, a qual chamava de “tóxico”, que lhe rendeu um mês na cadeia e alguns anos de exílio das ondas do rádio.
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Voltou, em triunfo. Quantos cantaram, batendo no peito, “boemia, aqui me tens de regresso”? “A volta do boêmio”, de Adelino Moreira, maior sucesso de Nelson Gonçalves, é uma pequena odisseia com sinal trocado, de quem sai do lar para retornar à esbórnia de aventuras alcoólicas.
Herdeiro de Orlando Silva e Francisco Alves, Nelson Gonçalves faz pensar em um de seus refrões memoráveis: “Naquela mesa tá faltando ele.”
MARIA MOLE
- 45 ml de conhaque
- 15 ml de Martini Bianco
Mexa os ingredientes com gelo e coe para um copo de bar sem gelo. Finalize com um twist de laranja.
Fonte ==> Folha SP