Na última terça-feira (3), Niéde Guidon amanheceu com dor no peito, na garganta, até no céu da boca. A enfermeira deu dipirona. Na hora do almoço, ela fez que comeu —um pedacinho de peixe— e tomou o aperitivo e o vinho, que nunca dispensava. À tarde, um chazinho. À noite, sopa e o último cálice.
Passada a meia-noite, a enfermeira chamou Isabela de Souza. Empregada da casa há mais de duas décadas, compartilhava com a patroa o amor pelos animais. Nenhuma das duas quis casar ou ter filhos. Isabela, para não correr o risco de apanhar de marido, como viu acontecer com a mãe. Niéde, com o humor cortante de sempre, costumava dizer que só aceitava criança “se fosse assada, com maçã na boca”.
Aflita, a enfermeira pediu ajuda: “a doutora” estava passando mal. No quarto, tentava medir a pressão, buscar os batimentos, mas não havia resposta. Isabela seguia suas ordens: puxava os pés, batia nas costas, fazia o que podia para reanimá-la —em vão. Chamaram o Samu, que chegou quando já era tarde. Niéde sofrera um infarto. O silêncio era imenso —os bichos, os cachorros, tudo parecia diferente. Ao encarar a cena, Isabela sentiu um frio na barriga: “Meu Deus. A velhinha se foi, e agora?”
Como assim? foi como reagi à notícia que recebi na véspera da viagem para São Raimundo Nonato, no Piauí. Niéde andava desanimada, incerta se aceitaria visitas. Havia chance de ela recusar. Saí à noite pela cidade, determinada a encontrar uma garrafa de vinho —francês, de safra decente— para levar como presente e, quem sabe, quebrar a resistência.
Uma cancela operada apenas por mulheres dava acesso ao terreno arborizado onde ficam os laboratórios de arqueologia, botânica, paleontologia, zoologia, a casa de Niéde e o Museu do Homem Americano —o mesmo onde, quatro anos depois, seu corpo seria velado.
Na multidão a homenageá-la, destacavam-se as guariteiras. Quando a “doutora” substituiu os homens por mulheres nas portarias do parque, elas começaram a usar o salário para sustentar a prole e ganharam autonomia para se livrar de maridos muitas vezes violentos.
Mas, naquela manhã de dezembro de 2021, tudo estava fechado, silencioso, vazio. As vacinas contra a Covid já circulavam, mas a vida seguia longe do normal. No portão de madeira, uma placa gasta exibia a sentença emprestada do inferno de Dante: “Lasciate ogni speranza, voi che entrate” —deixai toda esperança, vós que entrais. Apertei a garrafa com mais força e toquei a campainha, um sino pendurado na entrada.
A partir dali, passei a visitá-la todas as manhãs. Às vezes, conversávamos por horas; outras, ela preferia silenciar sobre o passado: “Desperdicei minha vida”, disse uma vez. “Esqueci tudo, e pronto.”
A franco-brasileira se amaldiçoava por ter trocado a capital francesa por uma cidadezinha no sertão, onde se dedicava ao Parque Nacional Serra da Capivara, constantemente em busca de recursos para o projeto. “Largo tudo e volto para Paris” virou seu mantra.
O tempo passou, e Niéde ficou. Aos poucos, criou raízes —deixou de assinar seu nome à moda francesa e adotou o acento agudo no “e”, mais natural para os brasileiros. Em 2018 a arqueóloga se despediu da presidência da Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), e do volante de automóveis. O único giro fora de casa era ir ao banco para fazer a prova de vida.
Através das paredes de vidro, acompanhava as borboletinhas amarelas dançando em bandos e o tempo pelo ponteiro da paisagem. Na seca, a vegetação da caatinga ganha um tom esbranquiçado —por isso os indígenas a batizaram assim, com uma palavra que em tupi-guarani significa “mato branco”. Depois, com a chuva, os mandacarus se abrem, e toda a vegetação volta a brotar da terra.
Outra distração de Niéde era observar a eterna disputa de território entre os cães —a poodle Chloé, a maltês Fifi e os shih-tzus de focinho amassado, Frida e Romeu— e o único gato na época, quase sempre vitorioso. “Cuidado, o bichano vai te pegar”, avisava, rindo, como quem já conhecia bem o desfecho daquela cena.
Num dia qualquer, com o cheiro da galinhada subindo do fogão à lenha na varanda, criei coragem e pedi para ver uma pasta com a etiqueta “Documentos Pessoais”. Ela resistiu, desconversou, fingiu não ouvir. Mas, depois de algum tempo, cedeu.
Dentro, fotos de amigos e da mãe, que ela perdeu aos seis anos, carteirinha da Sorbonne e o diploma do curso de história natural, de 1958. Até que, quase escondido no fundo, Niéde puxou um papel amassado. Alisou as dobras com as mãos e leu em voz alta as orientações que deixou para o próprio funeral.
Dispensava velório, reza, padre, ministro. Não queria ninguém junto ao corpo. Se morresse no Piauí, nem caixão, nem cremação. Preferia que a levassem ao Parque Nacional Serra da Capivara —última homenagem aos que vieram antes. Queixava-se de que ninguém aceitava seu plano. Dizia que, se pressentisse a morte e tivesse condições, iria sozinha. Deitaria no parque. Deixaria que os bichos a comessem. “Ao menos assim teria alguma serventia”, me disse num dos nossos encontros.
O plano jamais seria executado. Na manhã de quinta-feira, 5 de junho —doce coincidência, aniversário do parque e dia mundial do meio ambiente— acompanhada apenas dos mais próximos, Niéde foi enterrada no próprio quintal, como fizera antes com os bichos que teve ao longo da vida.
Fonte ==> Folha SP – TEC