A fúria israelense não arrefece. Quase dois anos depois de iniciada, a tempestade de bombas continua a abater Gaza, agora segundada por rajadas de balas na fila dos que mendigam comida. Israel tem uma ideia fixa: acabar com a chance —a ideia, o sonho— de haver, mesmo em mil anos, a Palestina.
A justificativa para o morticínio é sumária: Tel Aviv tem direito de se defender, precaver-se de assaltos como o de 7 de outubro de 2023, quando 1.200 foram mortos. Tal direito se traduz em dizimar o Hamas e fazer de Gaza terra arrasada.
Há mais motivos para a razia. Um deles, pouco falado, mas nada desprezível, é a vingança. Ela é exercida com frieza e afinco sobre os palestinos como um todo, não apenas sobre os terroristas. Tanto que o Exército caiu matando sobre a Cisjordânia, administrada por um inimigo visceral do Hamas, a Autoridade Palestina.
Ali, aumentou sobremaneira a expropriação de terras palestinas, ocupadas por 22 assentamentos ilegais. As provocações dos colonos são escancaradas. Mais de mil palestinos foram mortos desde o 7 de outubro.
Em Gaza, a vendeta se dá a ver na agressão a civis. Na escolha de hospitais e escolas como alvos. Na indução à fome de milhares, boa parte crianças. Na proibição de que entidades internacionais prestem assistência. Na disseminação de centros de tortura –denunciada pelo jornal Haaretz. Na transferência de moradores para locais distantes, gerando cortejos bíblicos de miseráveis. A crueldade é expressão da desforra.
Na retórica do governo, a vontade de punir tem algo de sádico. O ministro da Agricultura advogou uma nova Nakba, palavra que designa a “catástrofe” de 1948: a expulsão de 700 mil palestinos de seus lares. O do Patrimônio não descartou o uso de armas nucleares. A de Assuntos Femininos se disse “orgulhosa” das ruínas em Gaza, indício de que os que hoje são bebês “daqui a 80 anos contarão aos netos o que os judeus fizeram”.
Assim como a salada e a vingança, a geopolítica é um prato que se come frio. À medida que a revanche se perpetuava e os potentados dos Estados Unidos e Europa lhe davam carta branca, Israel se colocava novos objetivos, tão ambiciosos quanto arrasadores: reconfigurar aquele canto do globo e manter o mando per omnia saecula saeculorum.
Para tanto, soltou seus caças em cinco países: Iêmen, Líbano, Irã, Síria e Qatar. No Líbano, explodiu pagers, implodiu o Hezbollah, o partido paramilitar, e entupiu com 80 bombas o bunker de seu líder máximo há 33 anos, o clérigo Hassan Nasrallah.
Com o pretexto de que o Irã estava prestes a ter mísseis nucleares, convenceu Donald Trump a aterrar duas centrais de enriquecimento de urânio. Numa delas, Fordow, jogou petardos de 15 toneladas. Estourou escritórios de cientistas, ministros e generais da Guarda Revolucionária Islâmica. O objetivo do raide era derrubar o regime.
Na Síria, batalhou na guerra civil pela derrota da ditadura de Bashar al-Assad, aproveitando sua queda para abocanhar parte do território e explodir a infraestrutura. E incentivou um jihadista que integrou a Al Qaeda a empalmar o poder e tornar-se presidente.
Por fim, há 20 dias, invadiu o espaço aéreo do Qatar e bombardeou bairros residenciais de Doha, capital de um país teoricamente aliado. O intuito era assassinar dirigentes do Hamas com os quais fingia negociar um cessar-fogo.
Israel agiu nesses países para se livrar de forças políticas e militares que poderiam dificultar sua expansão. São muitos os analistas a dizer que incentiva rixas étnico-religiosas. Retalhados, países outrora sólidos, como Síria e Líbano, deixariam de ser nações soberanas. Utopia delirante? Foi o que o mundo livre e iluminado, nunca assaz celebrado, fez com o Iraque.
Desde sempre, Israel ganha todas. Mal e mal, os palestinos sobrevivem —empobrecidos, humilhados, isolados, sem perspectivas, sob a administração daqueles que seus colonizadores corromperam ou terroristas. E talvez nunca a derrocada tenha sido tão funda quanto agora.
Mas, paradoxalmente, nunca a causa palestina teve tantos defensores nem foi tão grande a repulsa a Israel. A BBC avaliou que a última manifestação pró-Palestina em Londres mobilizou um milhão de pessoas. Na Itália, nesta segunda-feira (22), houve uma greve geral e 500 mil foram às ruas.
Desde os protestos contra a intervenção norte-americana no Vietnã não se via algo igual. Pressionados, até os governos de França, Reino Unido, Canadá e Portugal reconheceram a existência da Palestina.
Ela está destroçada, mas vive.
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Fonte ==> Folha SP