Para muitos brasileiros, a primeira vez em que a identidade racial se torna uma questão explícita é ao preencher um questionário com a pergunta “qual a sua raça/cor?”. Mesmo para quem sofre racismo, a autodeclaração e autoaceitação podem ser complexas. Com crianças e adolescentes, esse processo está apenas começando —e, muitas vezes, são terceiros que decidem por eles. Os dados educacionais mostram o peso desse desencontro.
Quando o IBGE aplica um questionário do Censo Demográfico ou faz outras pesquisas amostrais, o recenseador é instruído sobre o princípio da autodeclaração. Ou seja, o respondente tem o direito de afirmar a sua própria identidade, com base na sua consciência e percepção. No caso do Censo, o respondente pode ter que fazer a seleção para todos os membros do domicílio.
O mesmo ocorre no preenchimento do questionário socioeconômico do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e do Enem, avaliações aplicadas pelo Inep. Nestes casos, os próprios alunos realizam a autodeclaração etnicorracial. Naturalmente, pode haver imprecisões nesses dados, devido ao processo de identificação ainda em desenvolvimento.
O processo difere no Censo Escolar, questionário que é respondido pela secretaria das escolas sobre cada um de seus alunos matriculados. Ou seja, em termos de classificação etnicorracial, trata-se de uma heteroidentificação. Muitas vezes, o técnico responsável pelo preenchimento irá utilizar as informações que tem disponíveis, como cópias de registros de nascimento ou fichas de matrícula.
Essa diferença metodológica traz diferenças sistemáticas entre a autodeclaração e a heteroidentificação que evidenciam que a pauta racial não está superada no nosso país. No Censo Demográfico de 2022, 60% da população que frequentava o ensino fundamental ou médio se autodeclarou como preta ou parda; no Censo Escolar do mesmo ano, 55% dos alunos foram heteroidentificados nessa classificação, diferença de cinco pontos percentuais.
Há ainda diferenças regionais. Nos estados do Sul, há uma maior proporção de alunos identificados como brancos e menos como pardos pelas escolas em comparação com o encontrado no dado do IBGE. Isso significa que alunos que se reconhecem como negros em casa aparecem embranquecidos nos registros escolares.
Nas bases educacionais oficiais não é obrigatório responder sobre identificação racial. No Saeb de 2023, um a cada quatro estudantes não fez declaração racial —proporção similar à encontrada no Censo Escolar do mesmo ano. Em 2024, campanhas de mobilização fizeram reduzir de 25% para 20% o não preenchimento da variável raça/cor no Censo Escolar. Essa melhora representa um avanço, mas ainda longe de garantir dados raciais completos, consistentes e fiéis à realidade.
Sem um retrato preciso, a desigualdade racial na educação permanece invisível —e, portanto, intocada pelas políticas públicas. Reconhecer, registrar e respeitar a identidade racial de cada aluno é um passo essencial para que a escola seja, de fato, um espaço de equidade. Isso passa por garantir letramento racial para todos alunos e profissionais da educação. Porque uma educação que apaga identidades é, no fim, uma educação que falha.
Colunas
Receba no seu email uma seleção de colunas da Folha
Fonte ==> Folha SP