Em “A Pele que Habito” (2011), de Pedro Almodóvar, a filha de um atormentado cirurgião é estuprada. Cego de raiva, ele submete o facínora a cirurgias que o transexualizam e acaba ainda mais cego de desejo pela ciborgue que emerge dos procedimentos.
O filme causou repulsa porque sua premissa é radicalmente anti-humanista. O fato de Vicente virar Vera na marra não impede ele de morrer e ela de nascer. A identidade se resolve na pele e não na consciência.
Bryan Johnson, o senhor que investe milhões em antienvelhecimento, tornou-se campeão de repulsa sob princípio análogo. Sua missão oficial é singela: fazer tudo o que for possível para vencer a morte em seu próprio jogo —alegoria que se despediu de Bergman e foi entronizada pelas redes sociais.
Porém, há uma pegadinha: a missão exige que aplique ondas de choque no pênis, tenha sua saúde retal avaliada com exatidão, ejacule em vidrinhos e jamais esqueça da análise do seu suor. É que dali podem sair sinais críticos para a sua jornada e o futuro da ciência.
A fantasia autoerótica chamaria menos atenção não fosse a ausência absoluta da consciência em sua fórmula da longevidade. Esqueça meditação, controle do estresse, contato com a natureza e qualquer outra tática para estender ou melhorar a vida mental. O sistema de Bryan promete ser 100% eficiente na eliminação da interioridade. Se antes ele era um empresário mórmon que se via como um corpo estranho na comunidade, hoje é um conjunto de biomarcadores controlados por um algoritmo. E nada mais.
Essa é a sua tara e verdadeira razão para o espanto: Bryan almeja ser o primeiro humano plenamente algoritmizado; o primeiro a caber na manifestação corpórea de sua existência —como um Mr. Olympia em eterna véspera de campeonato. Em vez da boneca sexual com IA, é o paciente de mentirinha que se submete aos caprichos maquínicos, enquanto seus olhos faíscam perversidade para as câmeras (“O Homem que Quer Viver para Sempre”, 2025).
Numa era em que as pessoas têm coragem de fazer depilação íntima numa live, mas horror à ideia de passarem algumas horas juntas, o contador de likes vai à loucura, assim como os comentários negativos, que ele consome com notável prazer.
Na vida de Bryan, o genuíno é calculado. Ele toma mais de cem comprimidos por dia e se submete a uma rotina estoica. Acorda às 4h, faz ginástica como um maluco e come a última refeição antes do meio-dia. Suplementos, azeites, comidas, tudo o que o empresário toca e mostra está à venda, incluindo a promessa de incorporar os seus biomarcadores, a qual ele filtra para o público com a máxima agressividade jurídica.
“Johnson disse que sua idade biológica havia sido revertida em 5,1 anos. Porém, os resultados mostraram que ela pode ter aumentado até dez anos.” Contratos de confidencialidade draconianos impedem ex-funcionários de questionarem a eficácia dos procedimentos e a segurança dos suplementos que ele vende, ainda que “cerca de 60% sofreram pelo menos um efeito colateral” (The New York Times, 21.mar.25).
A receita pode ser kamikaze, mas a máquina de vendas não para. É que a promessa de virar um ciborgue imortal através da submissão algorítmica é uma das melhores do mercado das fantasias, seção público de meia idade. Não surpreende que Bryan tenha acabado de registrar os direitos proprietários de uma nova religião.
Fonte ==> Folha SP