Search
Close this search box.
Search
Close this search box.

O dilúvio – 15/03/2025 – Antonio Prata

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de São Paulo no dia 16 de março de 2025, mostra o desenho do robô R2D2, personagem da série de filmes Star Wars criado por George Lucas, boiando em um tempestuoso mar avermelhado.

Domingo de Carnaval, estava deitado numa rede, na varanda de uma casa de praia, quando começou a ventania. Do chão, ao meu lado, uma almofada de uns 50 cm x 50 cm alçou voo feito um ganso apavorado com a chegada de seis pitbulls enfurecidos. Você pode achar que exagero na imagem ou pelo menos no número de pitbulls enfurecidos, mas, se visse a almofada alada sobrevoando um pula-pula (desses grandes, com rede de proteção colorida, coisa de bufê infantil, valeu cada centavo do Airbnb) e aterrissando uns 20 metros adiante, concordaria comigo.

Árvores grossas como postes pareciam girar bambolês nos pescoços, de modo que entrei na casa e fiquei embaixo de um batente, com medo de que uma jaqueira –ou mesmo alguma jaca— desabasse no telhado. “Foi a ventania mais forte que eu vi em 47 anos de vida”, fiquei repetindo aos amigos que encontrei durante toda a semana.

“Toda a semana”, não, porque na quinta, em São Paulo, veio o dilúvio —e o vento da praia ficou parecendo a brisa na letra de “Tarde em Itapuã”, causando o “diz-que-diz-que macio/ Que brota dos coqueirais”. Era tanta água que eu não enxergava o prédio a uns 30 metros do meu. A cortina branca não descia do céu: corria na horizontal. Os vidros da área de serviço chacoalhavam como se dezenas de membros de uma torcida organizada estivessem tentando derrubar o alambrado do campo para bater no juiz –e o juiz, no caso, era eu.

Entrei pelo apartamento com medo de ter deixado alguma janela aberta. O quarto do meu filho e o da minha filha estavam alagados, mas com as janelas fechadas. Demorei um pouco pra atender (ou pra aceitar?) que a água brotava pelo trilho em que corre o vidro; cascateava pela parede e se espraiava pelo chão. Nem pensei em panos, catei logo todas as toalhas do armário e joguei sobre as Cataratas do Iguaçu.

Na varanda, a churrasqueira a bafo de 95 quilos —tenho dificuldade para movê-la, apesar das rodinha— parecia o robô R2-D2 fugindo dos stormtroopers em Star Wars. Só parou ao atingir o vaso de um limoeiro, talvez mais pesado do que ela e que foi jogado meio metro pra frente.

Não sei quanto tempo depois (20 minutos? Oito horas?) a chuva passou. A cortina branca desapareceu. Duas árvores caídas só no meu quarteirão. Uma delas levou consigo um poste de luz e uma placa. Um rio descia a Angélica com sacos de lixo pretos e azuis competindo no triste rafting do Apocalipse.

Eu sei que uma almofada voando feito um ganso sobre um pula-pula, árvores com bambolês, janelas chacoalhando como se uma torcida organizada tentasse invadir o campo, uma churrasqueira-robô de Star Wars fugindo das tropas do Império e rafting de lixo não foi exatamente o que previu São João para o Apocalipse. O último livro da Bíblia fala mais sobre rios de fogo, lagos de sangue, chuva de enxofre, gafanhotos gigantes a aferroar eternamente as cacundas dos ímpios, mas não se pode pedir ao nobre autor, escrevendo há quase 20 séculos, que previsse pula-pulas, bambolês, torcidas organizadas, rios de lixo ou George Lucas.

Separados por 2.000 anos, mas unidos pela certeza e a insistência renitentes de uma Testemunha de Jeová –São João mais pra cúmplice de Jeová, eu mais pra réu– passamos a mesma mensagem: “o fim está próximo”. Ou melhor, o fim já começou. Não por conta dos pecados dos hereges, mas por causa dos combustíveis fósseis que queimamos para ir de carro à padaria da esquina ou para carregarmos os celulares em que veremos influencers de sobrancelha ou perderemos dinheiro no jogo do tigrinho. Seria trágico se não fosse cômico.



Fonte ==> Folha SP

Relacionados