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O homem liberal não existe – 02/03/2025 – Luiz Felipe Pondé

O homem liberal não existe  
A ilustração de Ricardo Cammarota foi executada em técnica manual, com tinta nanquim e pincel sobre papel. Posteriormente, a arte foi escaneada e colonizada digitalmente.  Na horizontal, proporção 13,9cm x 9,1cm, a imagem multicolorida apresenta um estilo artístico detalhado com traços pretos tortuosos. Ao fundo, há um amarelo intenso em contraste marcante com os elementos orgânicos desenhados, como um tronco de árvore que se entrelaça, formando uma composição fluida. As folhas e flores, desenhadas com linhas curvas e orgânicas, se distribuem por toda a imagem, com tons de verde e azul claro, destacando-se contra o fundo.  Na base da imagem, o cenário parece transitar para uma paisagem, com detalhes como flores de lótus e peixes nadando em fluidez e movimento. As cores e os detalhes intrincados conferem um aspecto de uma obra de arte clássica, com um toque moderno.

A filosofia política desde o século 17 criou modelos de ser humano que impactaram muito as práticas e expectativas políticas. Esses modelos são chamados de antropologia filosófica.

A verdade é que essas antropologias filosóficas têm sido marcadamente utópicas nas suas concepções. A consequência da natureza utópica desses modelos é que muitas das propostas políticas, incluindo visões de sociedade e de futuro, de organização institucional, ou mesmo do alcance da ação humana no tempo e no espaço, têm sido marcadas por esse sopro de ar utópico.

A própria noção de progresso moderno, típico desses modelos desde o século 17, é a marca registrada dessas utopias. A ideia de que o homem progride moralmente, politicamente e socialmente é filha desses modelos. A questão é: progresso técnico não implica progresso no resto, coisa que quase ninguém parece notar.

No campo socialista, filho dos revolucionários do século 19, esse caráter utópico aparece na crença de que o ser humano realizaria sua infinita capacidade criadora uma vez que os meios de produção deixassem de ser propriedade privada de alguns setores da sociedade e, portanto, o resultado do trabalho humano deixaria de ser alienado de toda a sua infinita autonomia criativa.

Na raiz dessa utopia está a crença de que através da ação política coletiva os seres humanos se tornariam mais convergentes nos seus desejos e ações, criando menos mal social e corrupção.

Apesar do fracasso retumbante desse tipo de utopia ao longo do século 20, ela permanece ativa em vários setores do espectro político e social. O que sustenta expectativas utópicas —o cristianismo é um caso evidente— é a afirmação de que certas condições de possibilidade para elas se realizarem não foram

devidamente preenchidas.

Algo deu errado no processo e a utopia não aconteceu. Como esse tipo de utopia deve se realizar no tempo histórico, e ele não acabou, permanece em aberto a possibilidade de que a expectativa em questão se realize da forma prevista no modelo num futuro próximo.

O caso do socialismo é marcado pela hipótese de que uma vez dada certa mudança na estrutura política e econômica, o ser humano verdadeiro, aquele alienado de suas potências, viria à tona ao longo do curso histórico transformado. Essa ideia é descrita como o nascimento do “novo homem”, que já existia, mas sob opressão do mal social, político e econômico.

Mas, esses modelos utópicos nem sempre implicam um curso histórico transformado dado para que o sonho se torne realidade. Nem sempre o modelo de homem em questão está no “fim da história”. Muitas vezes, ele pode estar no “princípio da história”, como no caso do liberalismo.

No caso da utopia liberal, a natureza humana aí concebida é de partida capaz de realizar a promessa. Essa diferença faz com que o objeto da crença utópica se faça, no caso liberal, invisível.

No liberalismo, a concepção de homem afirma que somos todos portadores de uma capacidade de fazer escolhas racionais todo o tempo e em todas as esferas da vida. A prova é que no início dos tempos pré-políticos —ideia esta já irreal— homens e mulheres escolheram racionalmente criar um ordenamento político para proteger suas vidas sórdidas, breves e brutas. Este ordenamento é o Estado liberal que existiria para proteger essa autonomia.

À diferença da utopia socialista, no liberalismo não existe a necessidade propriamente de uma ruptura de caráter violento e radical, mas, simplesmente, de passos graduais por meio do quais essa liberdade racional se faria cada vez mais eficiente.

O fato é que não existe esse homem racional que escolhe o tempo todo, sabendo o que faz a partir do acúmulo de informação dado pelos meios à disposição —nem a educação tem sido capaz de comprovar esse homem utópico, nem a mídia, ciência ou tecnologia, hoje fora de controle. Ele é tão utópico quanto o “novo homem” socialista. Passado anos, essa utopia criou a economia de mercado e a democracia liberal. Ambas estão muito longe da ideia de que uma racionalidade econômica, política, social ou moral exista em plena forma.

A ideia de que o Estado existiria para garantir a ordem do homem livre e racional não aconteceu. Pelo contrário, o Estado só cresce, se metendo em todos os níveis da vida de todos.

O liberalismo moderno, econômico e político destruiu todas as referências que ao longo dos milênios conduziram a humanidade ao presente porque seu princípio lógico é de que tudo antes do indivíduo racional pleno era lixo a ser esquecido. Restou-nos o vazio de valores a não ser o

dólar e a espada do Leviatã.



Fonte ==> Folha SP

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