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O patriarcado de chuteiras – 14/06/2025 – Antonio Prata

A imagem mostra uma chuteira de futebol branca com detalhes verdes, que está sendo usada como um suporte para canetas. Diversas canetas de diferentes cores estão enfiadas na parte superior da chuteira, criando um efeito artístico e funcional.

Longe de mim querer disputar com as mulheres o lugar de vítima do patriarcado. É o sexo feminino, evidentemente, quem mais se envenena com a masculinidade tóxica. Isso não significa que os homens não possam, vez por outra, se contaminar com o próprio cianureto.

Peguemos o futebol, por exemplo. Durante a infância e o início da adolescência o ludopédio pairava sobre mim como uma espada de Dâmocles. Quando eu menos esperava, num recreio, numa festa de aniversário, num acampamento de férias, uma bola surgia quicando, dois meninos escolhiam os times e pronto, lá estava eu tomando dribles por baixo das pernas, levando boladas na barriga e ouvindo “olééééé!”. Costumo dizer que, em relação às pernas, sou ambicanhoto: (não) bato com as duas.

Penso, agora, que deveria era agradecer ao esporte bretão. Deveria, todo dia, acender uma vela para Charles Miller, o inglês que, muito antes de virar praça, dizem, trouxe o futebol para o Brasil. Afinal, como escreveu Nietzsche (ou teria sido minha tia Corália?), “tudo o que não me mata me fortalece”. Foi por fugir da bola no recreio e me esconder na biblioteca que, talvez, tenha me tornado escritor. (Protegido por um grosso volume de “Os Trabalhos de Hércules”, de Monteiro Lobato, na última mesa do canto, atrás da pilastra, ninguém ia me encontrar, dizer “falta um, Antonio, entra aqui, a gente é sem camisa!”).

Só lá pelo fim da adolescência, começo da idade adulta, quando os neurônios passam a ser mais valorizados do que os hormônios, é que entendi que não precisava mais jogar futebol para tentar encontrar um lugar ao sol. Jamais faria um gol de placa, mas quem sabe poderia fazer um de letra?

A vida, contudo, é uma caixinha de surpresas e só acaba quando termina —Nietzsche? Tia Corália? Eis que, no ano da graça de 2013, fui escalado para a seleção brasileira de escritores, que iria a Frankfurt enfrentar a seleção alemã de escribas. Os brasileiros só se envergonham do 7 a 1 de 2014 pois não presenciaram o 9 a 1 que, numa noite gélida do velho continente, engolimos do escrete teutão. (Este que vos escreve, caro amigo, cara amiga, jogava na (sic) defesa.)

Jurei, então —a alma tão enrugada pela infâmia quanto os dedos dos pés pela inclemente garoa germânica— que para o bem do povo e felicidade geral da nação, nunca mais me arriscaria entre as quatro linhas.

A vida, contudo, é uma caixinha de fósforos, você nunca sabe o que tem dentro —Bezerra da Silva? Marcelo D2? Schopenhauer? Beckenbauer? Eis que, no ano da graça de 2025 a literatura mais uma vez me arranca do teclado e me atira no gramado. Domingo, dia 22, participarei de uma partida no Pacaembu. A pelada, provavelmente uma das mais tétricas já presenciadas pelo histórico estádio, encerrará a Feira do Livro 2025, que acontece durante toda a semana na praça Charles Miller —sim, aquele.

Apegado à promessa de 2013, ao receber o convite pro jogo, citei Alexandre de Moraes: “declino”. Informado, contudo, que os times seriam mistos, escritores e escritoras juntos, decidi dar minha contribuição à nobre causa do feminismo e vestir as chuteiras. Creio que, ao ser driblado por entre as pernas pela Giovana Madalosso, ao tomar na barriga boladas da Bianca Santana, ao ouvir “olééééé” da Tatiana Vasconcellos, contribuirei, ao menos um pouco, com o “empoderamento” feminino. Garanto a vocês: se depender dos meus dotes futebolísticos, o patriarcado cai antes de segunda-feira.



Fonte ==> Folha SP

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