“Eles odeiam muito. Odeiam as meninas.” Essa frase não veio de um estudo sobre misoginia ou da série “Adolescência”, da Netflix. Ouvi de uma diretora de colégio em São Paulo, em 2024, durante uma conversa sobre a proibição de celulares nas escolas.
A fala resume o que a diretora vinha testemunhando: o crescimento alarmante de comportamentos misóginos entre meninos —a ponto de precisar suspender alunos— e o adoecimento silencioso das meninas.
Meninas que se recusam a praticar esportes. Que estão obcecadas com sua aparência. Que buscam cirurgias plásticas ainda na adolescência. Que desenvolvem distúrbios alimentares, se automutilam e recebem licenças médicas por crises de saúde mental.
Isso não é exceção. É o novo normal de uma geração sendo formada —e deformada— pelas redes sociais. Não quero falar da série de TV. Quero falar da realidade. E de três temas urgentes que precisamos enfrentar como pais, educadores e sociedade: a formação de valores, a responsabilidade das big techs e a necessidade de regulamentação.
Perguntei a alunos de escolas públicas e privadas quantas horas por dia eles passam no celular. A média variava entre seis e dez horas. É tempo suficiente para moldar crenças, valores e a visão de mundo de qualquer um — especialmente de adolescentes. Enquanto pais e escolas se esforçam para educar, uma geração está sendo formada pelos algoritmos. Influenciadores com vidas “perfeitas”, homens frustrados e ressentidos, vídeos criados para chocar.
MrBeast, o maior youtuber do mundo, diz a seus funcionários: “Quanto mais estúpido o conteúdo, melhor”. E é essa lógica que reina. Estamos delegando a formação dos nossos filhos a plataformas que não se responsabilizam por nada além do tempo que conseguem capturar nossa atenção. Precisamos entender que a formação dos valores está em disputa e estamos perdendo.
O segundo ponto é que precisamos alcançar a responsabilização das big techs. Elas são parte do problema e sabem disso. A Meta —dona do Instagram e WhatsApp— conhece bem os danos causados por suas plataformas, mas não muda o design de seus produtos. Afinal, o objetivo é nos manter grudados na tela, não nos proteger.
Já sabemos que mudanças simples podem reduzir enormemente os riscos para crianças e adolescentes. Acabar com a rolagem infinita, que vicia e gera ansiedade. Remover páginas de fofoca adolescente, que promovem bullying e humilhação pública. Criar um WhatsApp sem fotos ou vídeos para menores, já que 80% dos meninos que acessam pornografia o fazem por ali. E eliminar conteúdos sugeridos por algoritmo, que empurram meninos para o extremismo e meninas para distúrbios alimentares e baixa autoestima.
Essas são ações possíveis, mas que exigem decisão política e pressão da sociedade. E assim chegamos ao terceiro, e último ponto: a urgência de regulamentação. O lobby das plataformas é poderoso. Mas isso não pode impedir nossa ação. A regulamentação precisa avançar —o que só vai acontecer com o apoio dos pais, dos educadores e da opinião pública.
A Austrália está entre os países que estão discutindo banir redes sociais para menores de 16 anos. O mundo está em movimento nessa direção e o Brasil não pode ficar para trás. A adolescência é a segunda janela mais importante de desenvolvimento humano. E o perigo nunca esteve tão perto: no bolso das nossas crianças, com acesso irrestrito, 24 horas por dia.
TENDÊNCIAS / DEBATES
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Fonte ==> Folha SP