Após três dias no Skoll World Forum, evento que reúne líderes de empreendedorismo social, pensadores e inovadores de vários países, volto com reflexões profundas.
O fórum, que aconteceu no começo de abril, em Oxford (Reino Unido), reuniu mulheres negras da diáspora —do Brasil, da Colômbia, da Nigéria, do Quênia—, líderes que criam soluções inovadoras para problemas sociais de longa data. Em círculos de escuta, debatemos o que significa orquestrar inovação social a partir de nossos lugares no mundo: do Sul Global, das margens, das potências invisibilizadas.
Enquanto vivenciávamos uma abundância de ideias, o contraste com a realidade da Feira Preta, em São Paulo, me marcou: tivemos que adiar o festival por falta de patrocínio. Neste ano, com toda a retórica ESG e os discursos sobre diversidade, ainda não conseguimos reunir os recursos necessários para realizar novamente o maior festival de cultura negra da América Latina.
Algo está fora de lugar. A inovação pulsa nas periferias e nas lideranças femininas e negras, mas os recursos continuam centralizados em modelos conservadores. Vemos muitas promessas, mas poucos repasses. No painel “Philanthropy at a Crossroads”, líderes de grandes fundações falaram sobre mudar o modelo de “grantmaking” tradicional (estratégia de filantropia ou investimento social que envolve a distribuição de recursos para organizações), adotando o “blended finance” (“financiamento misto”) e redistribuindo poder para lideranças locais. Mas, na prática, ainda falta coragem institucional para mudar.
Uma fala ressoou: “Este não é o momento de recuar. É o momento de ir mais fundo”. Em uma sessão sobre investimentos na África e na diáspora, ficou claro que o acesso a crédito é uma barreira global.
Mulheres negras, inclusive no Vale do Silício, enfrentam as mesmas dificuldades. No Brasil, a maioria dos empreendedores negros movimenta a economia, mas segue invisível. O sistema financeiro exige confiança, mas nunca confiou nas nossas histórias. Sempre temos que comprovar o que já deveria ser um direito.
A contradição é clara: abundância de inovação social, escassez de financiamento com propósito. Filantropia e investidores falam de impacto, mas continuam presos a lógicas lentas e distantes. Do outro lado, nossa capacidade de criar soluções está a pleno vapor: tecnologias sociais, sistemas financeiros alternativos, narrativas e ecossistemas de inclusão produtiva. Falta que a confiança institucional se traduza em investimento real.
Outro ponto crítico é a ausência de investimento em tradução e acessibilidade linguística. Um evento global, diverso e bem financiado, ainda centrado no inglês como única língua de diálogo. Em tempos de inteligência artificial, é inadmissível excluir vozes por barreiras linguísticas. Se queremos inovação e colaboração global, garantir a expressão em língua de origem é um ato político essencial.
Saio com a certeza de que não nos falta criatividade. Falta capital paciente, investimento direcionado e coragem institucional para apostar em quem transforma realidades a partir das margens. Talvez o mais urgente não seja apenas falar de orquestração sistêmica, mas vivê-la. Estamos atravessando crises simultâneas —climática, econômica, social, política e humanitária— que desafiam os modelos tradicionais. As fórmulas antigas já não projetam um futuro diferente.
É preciso regenerar as formas de escutar, decidir e alocar recursos. Repactuar práticas filantrópicas, abandonar a competição e abraçar a colaboração. Reconhecer saberes, histórias e territórios como ativos centrais, não periféricos. A inovação também está em como nos relacionamos e construímos soluções de forma coletiva.
Que a escuta ativa —como a vivida no Skoll— se traduza em recursos, alianças e mudanças reais. O futuro já está sendo construído. Ele é coletivo, plural e profundamente negro.
TENDÊNCIAS / DEBATES
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Fonte ==> Folha SP