Dias atrás, uma dessas viralizações extraordinárias dominou a internet brasileira. Dessa vez o vídeo não serviu para desinformar e disseminar ódio e medo. Fez denúncia inteligente e objetiva do mais alto interesse público —a proteção da infância.
Felca, o produtor do vídeo, dissecou mecanismos formadores de comunidades pedófilas nas redes. Veicular a adultização, sexualização e exploração de crianças é prática rentável para empresas como Instagram, TikTok, YouTube, Facebook ou Telegram. E facilitada por seus algoritmos.
Assim como supremacistas brancos usam “apitos de cachorro”, códigos cifrados para comunicação de grupo, pedófilos usam apitos da mamadeira de piroca. A palavra “trade” na seção de comentários é um deles. Quando escrevem “trade”, pedófilos comunicam intenção de comerciar imagem íntima de criança, relaxar e gozar. Big techs têm capacidade de coibir, mas deixam rolar.
Foram imediatas as reações na pauta do Congresso e do Governo. Apareceram propostas de lei e grupo de trabalho. Nos próximos dias devemos assistir a uma coreografia de boas intenções e ajustes cosméticos das próprias redes. Diante do risco da regulação estatal moldada no interesse público, devem anunciar medida cosmética de autorregulação privada.
Manifestações indignadas cruzaram o espectro político da direita à esquerda, mas indicaram divergência sintomática. Enquanto um lado fala em decadência moral, bons costumes e punição dos depravados, outro enfatiza promoção e proteção de direitos, prevenção de abusos e regulação dos ambientes digitais que turbinam exploração sexual.
Para um, a responsabilidade moral e jurídica é de indivíduos libertinos que molestam crianças. Não sobra responsabilidade para a empresa que se recusa a aplicar dispositivos simples de tecnologia para prevenir a violação.
Para outro, há não só cumplicidade empresarial, mas intencionalidade. Mais rentável que prevenir é deixar o crime fluir no atacado e defender punição redentora de meia dúzia de predadores sexuais no varejo.
Um prefere concentrar o olhar indignado no pedófilo e esconder o parquinho de erotização infantil construído por Big techs. O mesmo que olha para o apostador viciado e finge não ver o papel das Bets na economia da inoculação do vício. O outro se permite olhar para além do pedófilo e enxergar a gestora do lucrativo parquinho do crime sexual.
Para um, crianças devem estar protegidas exclusivamente pelos pais, sem intervenção regulatória constitucional. Para outros, a delegação de poder familiar absoluto aos pais deixa crianças mais vulneráveis. Sem política pública de educação sexual escolar, a própria casa vira ambiente liberado de abuso. E também o perfil de Instagram dos pais.
Para um, qualquer regulação é censura, mesmo que proteja crianças. Para outro, regulação deve promover direitos em geral e o próprio direito à liberdade de expressão.
Não está difícil saber qual lado busca testar medidas estruturais, enfrentar o risco de erro e encontrar a solução. Não está difícil ver qual lado, enquanto grita “fogo nos pedófilos”, quer a vigência da liberdade de expressão pedófila canalizada pelo algoritmo de instigação pedófila.
Fonte ==> Folha SP