Em uma eleição recente, um candidato a governador me convidou, junto a outras pessoas, para ajudá-lo na preparação para uma entrevista em uma rádio evangélica. Havia na sala talvez cinco ou seis assessores diretos. Nenhum deles, no entanto, tinha familiaridade com a Bíblia.
Está na hora de candidatos e partidos entenderem o que a Bíblia representa —para além da ideia de que se trata apenas de um livro moralista e desatualizado do ponto de vista científico. A Bíblia é também uma espécie de gramática, uma maneira de organizar o entendimento sobre as coisas. Isso é especialmente verdadeiro no protestantismo, que estimula os fiéis a lerem e se expressarem biblicamente.
Desde que comecei a conviver com evangélicos pobres, em 2013, fico fascinado pela erudição que muitos deles demonstram em relação à Bíblia. São pessoas com pouca educação formal, que têm dificuldades para escrever fluentemente, mas que, quando discutem, lembram acadêmicos ao formular raciocínios sofisticados com base em referências, por vezes, a passagens pouco conhecidas da Bíblia.
Antropologicamente, a Bíblia apresenta aos cristãos uma mitologia. “Sendo mito, ela explica o mundo —e não há nada além dele”, diz o antropólogo Rodrigo Toniol, da UFRJ. “Mas, como é polissêmica, nenhuma interpretação a esgota. E é isso que deve ser disputado.”
Na semana passada, a psicanalista Karin Wondracek confrontou, nesta Folha, os deputados evangélicos que votaram a favor do PL da devastação usando apenas referências bíblicas. A argumentação mostra que eles não estão agindo conforme a Bíblia e que, portanto, sua atitude constitui um pecado.
Há também um nível mais profundo, acessível por meio do estudo dos textos originais e da análise das traduções. O pastor Edson Nunes, que se doutorou no Departamento de Hebraico da USP, defendeu em sua tese que a Terra, no livro de Gênesis, não é um objeto, mas um sujeito. A Terra é alguém com vontade e intenção —não apenas um ser passivo a ser colonizado e explorado.
Tudo —ou quase tudo— pode ser analisado biblicamente. Há uma série de teólogos e teólogas, como as pastoras Cynthia Muniz e Karen Colares, que examinam as Escrituras para refletir sobre os papéis de gênero nas igrejas. Em igrejas afirmativas, pastores LGBT analisam e debatem, por esse mesmo caminho, as passagens que condenam a homoafetividade.
Não estou aqui argumentando que políticos devam ler a Bíblia —embora isso fosse útil em um país onde mais de 80% da população se identifica como cristã. Mas que estejam preparados para acionar essa gramática em suas campanhas de comunicação.
Não se trata de ensinar candidatos a citar versículos, como faz Bolsonaro, mas de entender que não recorrer a essa gramática significa ser analfabeto e estrangeiro para os 27% dos brasileiros que se identificam como evangélicos.
Em vez de debater se os evangélicos —de forma genérica e homogeneizante— estão certos ou errados, é mais eficaz debater com eles o que é certo ou errado a partir do código que dominam e usam para se comunicar. Optar pelo analfabetismo bíblico significa abrir mão de disputá-los —e de disputar o que a própria Bíblia pode dizer.
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Fonte ==> Folha SP