Os pais deram um beijo em cada criança e indicaram uma trilha incerta. As mochilas bem ajustadas às costas e amarradas na cintura indicavam uma viagem longa, com sanduíches e água. Acostumadas a enganar a fome, as crianças decidiriam depois sobre a provisão: comer para seguir adiante ou garantir nas migalhas a volta para casa. Era a hora da despedida, sem mais.
Na adaptação dos irmãos Grimm, o romantismo da época traz ao conto germânico medieval o encanto sobrenatural da jornada, com matizes melancólicos em uma floresta e sentimentos humanos sublinhados por elementos simbólicos, como a luz da lua que conduz João e Maria.
Na minha versão, também prevalece a luz branca e vazia, de um estranho aspecto aveludado, mas é do sol do deserto. E a caminhada segue. Os irmãos, inocentes e desconhecedores dos perigos da viagem, riem do chocalho de cascavéis e de um homem que afirma ser um coiote, liderando um grupo de viajantes tristes. Suas sombras se alargam no chão, lembrando cruzes que se confundem com a vegetação escassa, mas João e Maria não veem nada disso.
Com a habilidade de quem cresceu no deserto, as crianças escapam de predadores como o puma, o lince ou a raposa-do-mato. Os cactos brilham à luz do sol, e elas sabem extrair água deles. A distância, as montanhas rasas são uma visão celestial de um lugar que não chega nunca.
“João e Maria” é uma história recorrente sobre o êxodo, a miséria, muita violência longe de casa e a promessa de um retorno feliz. Em versões que datam da Grande Fome na Europa (1315-1317), a mãe abandona os filhos, mas nas histórias populares que foram se revestindo de um moralismo cristão, uma mãe amorosa e sacrificada não poderia ser fria a ponto de expulsar os filhos para garantir a própria sobrevivência.
Na versão dos irmãos Grimm, a mais conhecida, a mãe é trocada por uma “mulher” —supomos uma madrasta, capaz de ser invejosa? E na trama João e Maria se deparam com uma bruxa terrível que os recebe de braços abertos. Boa metáfora de uma terra estrangeira —uma velha canibal e exploradora até os ossos—, costurada ao caráter misógino corriqueiro dos contos de fadas.
Até aqui, nenhuma novidade, mas o que me chama a atenção é como a história sobrevive há mais de 700 anos. E não é porque as crianças assam a bruxa no forno e ressurgem em casa enriquecidas. Ou porque a “outra” morreu assintomática e com o pai foram felizes para sempre. São elementos que apimentam o relato, mas a força está no êxodo da sobrevivência.
De criança, ficava pensando na viagem de Alice, mas a queda perpétua levou-a ao País das Maravilhas, com uma rainha de copas, no máximo excêntrica. Ao ler João e Maria, eu não entendia bem o que poderia ser o delírio da fome. Na escuridão do meu quarto, fascinava-me a casa feita de doces. Via seu brilho enfeitiçado, mesmo sem ter ideia de que o açúcar em tempos medievais chegou a valer mais do que o ouro, assim que a casinha da bruxa teria proporções de um Taj Mahal da fartura.
Sim, a longevidade do relato de João e Maria segue de mãos dadas com tempos de miséria e de desespero alucinantes, e nos ensina também que para sobreviver vale tudo. Inclusive abandonar uma criança, o que pode ser visto como um ato de amor verdadeiro. É Moisés em um cesto no rio Nilo, na esperança de que pelo menos o filho sobreviva. E na cartilha de João e Maria, invadir a casa dos outros, comer alguns tijolos de biscoito, mentir e matar alguém não são lições tão cristãs assim.
De volta ao deserto, o coiote vestido de homem fala às crianças de um lugar maravilhoso e lhes propõe uma troca justa: ele fica com a água e os sanduíches, já que em breve encontrarão uma casa inteira de chocolate, e ele lhes indica o caminho. O menino, tímido, pergunta se é como em “João e Maria”. “Isso mesmo! Sempre em frente”, responde o coiote. Depois de mais um dia de caminhada, a exaustão toma conta das crianças.
Sonham com uma mulher enlutada em uma paisagem incandescente e se surpreendem ao contar-se o mesmo sonho. Recordam a mãe que lhes sorri, mas não a reconhecem na imagem. A mulher no sonho causa medo talvez porque seja uma estranha.
Na história original, a condição para o retorno da viagem é aniquilar o monstro tirano desconhecido. No mundo de hoje, a bruxa seria capaz de abusos sexuais e de recrutá-los para uma facção criminosa. João e Maria verão de tudo.
A minha história tem um final relativamente feliz. Maria não assa a bruxa no forno nem liberta João. Ela é adotada longe de casa, esquece a língua materna, ama os novos pais e nunca mais vê o irmão.
Ele foge e segue fugindo, em busca de algo que se lembra, mas não enxerga. E volta para a casa já adulto. O pai está a ponto de morrer. Mas a reunião os enche de felicidade e João percebe que sua vida, finalmente, ganhou sentido. E torce para que Maria, em algum lugar, também esteja bem.
Fonte ==> Folha SP