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Relação aberta pode virar armadilha? – 13/08/2025 – Amor Crônico

Ilustração em vetor colorido em estilo cartoon plana mostra multidão de homens nus e mulheres abraçando e beijando. Conceito de poligamia, poliamor, relacionamento romântico e sexual íntimo aberto, amor livre

Até pouco tempo, os erros clássicos do “autoengano conjugal” para tentar contornar uma crise sem tocar no que realmente incomodava eram: casar ou ter um filho —como se esse passo feliz e socialmente celebrado fosse capaz, por si só, de levar o casal para a próxima fase do videogame relacional, desbloqueando novas paisagens sem enfrentar os monstros já presentes. Hoje, o subterfúgio mais comum tem sido abrir a relação para tentar fechar as feridas, como se ampliar o território sexual e afetivo pudesse, magicamente, distensionar conflitos latentes.

Do ponto de vista psicanalítico, há um mecanismo defensivo: desloca-se o conflito do campo íntimo para um cenário aparentemente mais arejado. Ao abrir a relação sem abrir o diálogo, transfere-se o foco das questões estruturais para um arranjo externo, acreditando que a mudança de forma dissolverá o mal-estar.

É como trocar o cenário de uma peça sem reescrever o roteiro: os personagens repetem os mesmos atos, agora em outro palco. Não é surpresa que muitos casais que tentam abrir a relação para salvar o relacionamento acabem se separando. O senso comum culpa o modelo. A pergunta certa é: quais bases sustentavam esse acordo e a quem ele beneficiava?

Por mais que tenhamos pensadores comprometidos com a discussão de uma não monogamia política – como Geni Núñez, Rhuan Fernandes e Antonio Pilão,que já entrevistei no meu podcast Amores Possíveis -, a prática de muitos ainda se apoia num falso discurso “não monogâmico” e numa visão simplista da relação aberta. Nessa versão diluída, abrir não significa repactuar, mas criar um álibi moderno para manter as mesmas dinâmicas assimétricas e silenciadoras. É uma abertura que fecha: fecha a possibilidade de reconfiguração estrutural do vínculo, a escuta genuína das vulnerabilidades e até o espaço para o conflito produtivo – aquele que, quando atravessado, fortalece o laço.

Esta abertura simplista, na maior parte das vezes, se pauta na ampliação de parceiros sexuais e na valorização da liberdade individual entendida como direito de “ir e vir” , liberando-se também dos incômodos e ajustes do acordo. Na interpretação livre de “o combinado não sai caro”, tudo estaria liberado —o que silencia o mal-estar. É uma apropriação egocentrada e utilitarista de um conceito que, na origem, supunha um exercício radical de escuta e reconfiguração das dinâmicas de poder.

Para piorar, o discurso vem envelopado em ares de modernidade —como se ser monogâmico fosse caretice e “ser descolado” fosse simplesmente não limitar o desejo— mas limitar as conversas sobre ciúmes, incômodos, mudanças… Isso pode… Isso por que, nessa lógica, conversar sobre sentimentos não é visto como exercício de intimidade, mas como sinal de insegurança; negociar limites é apego a modelos “ultrapassados”; e o incômodo legítimo do outro é tratado como ameaça à liberdade individual. É o paradoxo de um arranjo que se anuncia libertário, mas blinda cada parceiro contra qualquer exigência afetiva —mantendo intacto o território que a abertura prometia transformar.

A leitora que me escreveu levou muitas sessões de análise para reconhecer que aquele fora seu relacionamento mais abusivo. A suposta desconstrução patriarcal, embalada num discurso sedutor de liberdade, pode manipular tanto quanto as velhas formas de controle que já aprendemos a nomear. Sob o verniz progressista, escondem-se as mesmas assimetrias e silenciamentos, apenas reorganizados numa nova estética. Reconhecer isso não é negar as potências da não monogamia, mas admitir que qualquer configuração usada como cortina de fumaça para evitar o encontro real repete o mesmo roteiro de violência e evitação.

Acredito que até as relações monogâmicas podem aprender com as lógicas da não monogamia política —que vai além da abertura sexual e rejeita a liberdade individual radical. Como monogâmica assumida, vejo valor na proposta de um amor artesanal, feito de acordos e re-acordos constantes, guiados pelos sentimentos e desejos de ambos, não por normas sociais. O convite é para relações de interdependência, não duas independências que coexistem. O contorno nasce do “nós”, não da vontade de um só o que nos convoca a parar de defender as individualidades para se implicar juntos nas questões que atravessam o casal.

A proposta é oposta ao clima “sou livre e por isso bem resolvida, te liberando das minhas nóias” pregado pelos falsos não mono. Mudar de ideia, sentir insegurança ou estar sobrecarregado é humano; logo o espaço para compartilhar o desconforto e pedir rearranjos é sagrado.

Liberdade no amor não é fórmula nem rótulo; não está em abrir a relação para fugir dos conflitos, mas em abrir espaço: para o diálogo difícil, para a vulnerabilidade, para o rearranjo constante do que somos juntos. Só quem abraça essa incerteza e se permite o encontro real constrói um vínculo que resiste, pulsa e se transforma com a vida.

Então, quando você se pegar pensando se abrir a relação é um caminho, lembre: o que faz a diferença não é o modelo, mas a coragem de olhar para a dor, falar dela e se reinventar como casal sem muletas, sem subterfúgios. O resto é só cena desconstruída para esconder o que ainda está enraizado.

E se você também tem um dilema ou uma dúvida sobre suas relações afetivas, me escreva no colunaamorcronico@amorespossiveis.love. Toda quarta-feira respondo a uma pergunta aqui.



Fonte ==> Folha SP

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