São Paulo
O Brasil ouviu por décadas a frase “bandido bom é bandido morto”. O que poucos sabem é que ela nasceu dentro de uma organização real, tão controversa quanto emblemática: a Scuderie Le Cocq. Dirigida por José Tapajós, a série documental “Homens Sem Lei”(A&E), resgata a história do grupo com rigor jornalístico e riqueza de detalhes.
Mais do que recontar crimes, a produção revela como uma associação formada por policiais e apoiada por setores da imprensa e parte da população, se tornou símbolo de um período de violência urbana institucionalizada no Rio de Janeiro.
Tapajós diz que, conforme ia pesquisando em arquivos, entrevistas e registros da época sobre o esquadrão da morte carioca, mais ia ficando impressionado. “Era uma associação que, de fato, funcionou, que tinha milhares de associados com carteirinha”, conta. “E quando eu, enfim, me deparei com a história toda, ela explicava algumas coisas, ligava muitos pontos em uma mesma narrativa”.
O documentário parte de um episódio-chave de 1964: o confronto entre o traficante Cara de Cavalo e o detetive Milton Le Cocq, o policial mais temido de seu tempo. Após matar Le Cocq, o criminoso se tornou alvo de uma das maiores caçadas policiais já registradas no Brasil. Foram 120 dias, cerca de 300 homens mobilizados e um desfecho brutal para vingar a morte do detetive: mais de 60 tiros disparados contra Cara de Cavalo, encontrado pelo esquadrão em uma casa, em Búzios.
Sua morte deu origem ao grupo batizado em homenagem ao detetive e fundado, entre outros, pelo ex-delegado Sivuca, autor da célebre frase.
A Scuderie Le Cocq tinha estatuto, sede (cedida pelo governo), e, em seu auge, mais de sete mil membros num grupo de apoio às suas atividades, incluindo médicos, advogados e até celebridades como Pelé (há fotos comprovando) e Frank Sinatra —este último, inclusive, teria visitado a sede durante passagem pelo Brasil.
“A organização do grupo foi algo que me impressionou muito. Pagarem mensalidades, terem ajuda mútua… e ainda a participação de figuras famosas. Era tudo muito estruturado”, relata o diretor.
Antes da Scuderie, já existia o SDE (Serviço de Diligências Especiais), um grupo de elite formado nos anos 1950 para “eliminar” criminosos. Mas o que diferenciou o novo esquadrão foi o caráter de clube, com símbolos e um lema explícito de extermínio, representado por uma caveira sobre duas tíbias e pelas iniciais E.M. (Esquadrão da Morte).
“A gente ouviu dos próprios jornalistas que eles tiveram um papel central nisso. O termo ‘Esquadrão da Morte’ foi criado na redação. O apelido ‘Homens de Ouro’ também nasceu no jornal. Ficou claro para nós que a imprensa policial da época tinha um papel ativo nessa escalada de violência”, afirma Tapajós.
O diretor conta ainda que a relação entre imprensa e polícia era tão estreita que, em um dos episódios, um jornalista relata ter sido obrigado a pegar uma arma e atirar durante uma ação. “O que pode ser mais carnal do que um jornalista atirando? Era a imprensa e a polícia de mãos dadas, fazendo esse jornalismo policial”, lembra. A série explora essa cumplicidade, mostrando como as manchetes e reportagens ajudaram a construir o imaginário popular sobre crime e “justiça”.
Cada episódio de “Homens Sem Lei” é construído a partir das histórias dos principais alvos do grupo, como o próprio Cara de Cavalo, Lúcio Flávio —eternizado no cinema por Hector Babenco— e o detetive Mariel Mariscot, conhecido por casos amorosos com atrizes famosas e cuja filha, Marielsa, relembra passagens marcantes, incluindo a fuga a nado da Ilha Grande para assistir ao seu nascimento.
Tapajós destaca que o objetivo não era criar uma ficção: “Quanto mais para a ficção a gente vai, mais se afasta da história. Queríamos contar os fatos pelos olhos de quem viveu, porque a carga da ficção já estava presente na cobertura da imprensa da época.”
Para ele, revisitar esse passado é essencial para compreender a violência de hoje: “Fala-se muito das milícias atuais, mas ninguém olha para os anos 1960. Entender a Scuderie é entender as raízes disso tudo.” A série estreia na quinta-feira (14) e é coproduzida pela Pacto Filmes e Mescla Entretenimento.
Fonte ==> Folha SP