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Svetlana Jitomirskaya: descobrir é a beleza da matemática – 20/08/2025 – Ciência

A imagem mostra o perfil de uma mulher com cabelo preso, olhando para a direita. Ao fundo, há uma lousa verde com várias equações matemáticas escritas em giz branco. As equações incluem símbolos e letras, como A(x), T, e setas indicando relações entre os termos. A mulher está vestindo uma blusa branca e parece estar em um ambiente educacional.

Depois de trabalhar longamente para cobrir as lacunas de um famoso problema da matemática contemporânea, o Problema dos Dez Martinis, Svetlana Jitomirskaya viu um jovem matemático espanhol, Joaquim Puig, com base no esforço dela, chegar muito perto da solução final do enigma.

A russo-ucraniana radicada nos Estados Unidos ficou aborrecida e achou que a resposta de Puig já estava perto o suficiente do objetivo final para que novos esforços valessem a pena. Mas um jovem matemático brasileiro, munido de um plano e de muita vontade, convenceu Jitomirskaya a unir forças para fechar as lacunas que restavam. O ano era 2004, e o brasileiro era Artur Avila, ganhador da Medalha Fields em 2014.

No fim, deu certo: a dupla publicou a prova definitiva, eliminando as dúvidas que restavam para o problema proposto pelo matemático Mark Kac (que pagaria os drinques para quem o resolvesse) e formulado e popularizado pelo físico Barry Simon.

Jitomirskaya veio ao Brasil para participar do Colóquio Brasileiro de Matemática, que aconteceu de 27 de julho a 1º de agosto no Impa (Instituto de Matemática Pura e Aplicada), no Rio, e proferir uma palestra na qual aprofunda os achados do famoso problema, cuja matemática está embutida na imagem conhecida como Borboleta de Hofstadter.

A imagem surge quando se estuda como elétrons se comportam em certos materiais sob campos magnéticos. Ela mostra, num gráfico cheio de simetria e recortes, todos os possíveis valores de energia desses elétrons, de acordo com a intensidade do campo magnético. À medida que o parâmetro do campo se aproxima de valores irracionais, o desenho se fragmenta em intervalos cada vez menores, até sobrar só um conjunto de pontos dispersos —o chamado conjunto de Cantor, um fractal cheio de buracos.

O Problema dos Dez Martinis era provar matematicamente que, para qualquer valor irracional, o espectro realmente vira esse conjunto de Cantor, algo muito mais complexo do que parece à primeira vista.

“Sempre é muito bom contribuir com algo que possa ter impacto na física. Especialmente mostrar para os físicos algo que eles não sabem, ou que percebem de forma errada”, afirmou Jitomirskaya em entrevista à Folha.

Para ela, o caminho para alguém despertar o lado matemático é driblar os algoritmos e as decorebas, e apostar em problemas não convencionais, como aqueles de olimpíadas de matemática. “Não deveria se ensinar ‘como pensar’, porque quando você dá um algoritmo, a pessoa perde a sensação de descoberta, de beleza. É importante desvendar algo por conta própria.”

Sabemos que a sra. teve um lar matemático. Diria que sua ida para essa área foi algo natural?

Eu não dava sinais de ser tão inclinada para a matemática quando criança. E meus pais também me desencorajavam bastante de seguir esse caminho. Eu tinha outra paixão: poesia russa. Eu estava ganhando competições nacionais ucranianas, e estava meio que planejando seguir uma carreira nas humanidades. Mas isso também não era muito incentivado pelos meus pais. Minha mãe queria que eu me tornasse médica. Não era porque era uma profissão prestigiada na União Soviética —na verdade, todo mundo recebia o mesmo salário. Mas ela realmente acreditava na missão da profissão médica, esse era o sonho dela para mim. Mas eu tinha medo de sangue.

Então desenvolvi um interesse muito forte nas humanidades e na poesia russa, mas ficou claro que, se eu fosse obter um diploma em humanidades, tudo seria muito, muito ideologizado —eu teria que elogiar o Partido Comunista em toda frase. Não era o que eu queria. E eles ficaram com medo de que eu me tornasse parte do movimento dissidente, o que não era um bom caminho na União Soviética. Então eles se convenceram de que não seria tão ruim assim eu fazer matemática. (risos)

Por ser judia, houve alguma dificuldade a mais nessa preparação?

Era preciso ter muita preparação para entrar em uma boa universidade, especialmente em matemática. Então comecei a me preparar para esses exames e decidi tentar entrar na Universidade Estadual de Moscou. Isso já era complicado, mas era quase proibitivamente difícil para judeus, porque havia essa regra não escrita, em que basicamente sujeitavam os judeus a testes muito mais duros, com problemas praticamente impossíveis. Assim garantiam que, em cada turma, não houvesse mais que dois judeus. Isso em meio a 500 pessoas. Aconteceu uma espécie de milagre, meu arquivo se perdeu, ou algo assim, e acabei sendo aceita.

Meu interesse por matemática se desenvolveu durante a preparação para esse teste “impossível” para judeus. De certa forma, havia problemas muito interessantes, foi assim que encontrei uma matemática bonita pela primeira vez. Lá, eu senti que tinha sido um milagre eu ter entrado, e senti que precisava estar à altura da ocasião, estudar por todos os meus amigos judeus que não conseguiram. E eu agarrava todas as oportunidades: seminários para iniciantes, aulas com veteranos… E realmente desenvolvi interesse por matemática. Logo eu não queria saber de mais nada. Adeus, humanas! (risos)

E por ser mulher na academia na União Soviética? Houve alguma barreira de gênero?

Depois que virei estudante não senti esse peso, mas ele certamente existia na minha infância. Meus pais meio que me desencorajavam a ser matemática, apesar de minha mãe ser uma matemática muito reconhecida. Ela dizia que não era um bom trabalho para uma menina. Ela dizia: “Como mulher, você vai querer trabalhar das 9 às 5, voltar para casa e não pensar em trabalho, só se dedicar à família. E não dá para fazer isso sendo matemática.”

De fato, na União Soviética, havia pouquíssimas mulheres matemáticas. Minha mãe foi, por muito tempo, a única a chegar ao posto de professora titular em toda a Ucrânia —e era um país grande, com 30 milhões de pessoas. Mas isso não era por discriminação, e sim por questões culturais. A vida já era dura o suficiente, então poucas se arriscavam. Mas como estudante, nunca vi problema em ser mulher. Fui respeitada pelos colegas e professores, de forma proporcional ao que eu conseguia demonstrar. Claro, havia questões de assédio sexual meio estruturais, mas isso não era específico da profissão, era algo que toda mulher enfrentava.

Na minha primeira conferência teve um cientista famoso, mais velho, que pareceu interessado no meu trabalho, mas depois percebi que não era no trabalho, e foi extremamente desanimador.

Isso melhorou quando a sra. começou a ficar mais conhecida?

Quando comecei a ganhar prêmios, senti que as pessoas não davam o devido reconhecimento a eles por eu ser mulher. Existe essa percepção de que para mulheres é mais fácil serem laureadas. E há um fundo de verdade nisso, é preciso reconhecer, mas cada caso é um caso. Pode ter havido viés na seleção, ou não, mas há 100% de viés na percepção. Acho que algumas pessoas não consideram os reconhecimentos que eu recebi, mas é um preço pequeno a se pagar.

A sra. pode explicar para o leitor o que é o Problema dos Dez Martinis e por que ele é bonito?

Existe essa imagem linda de uma borboleta, a borboleta de Hofstadter, que representa certos objetos chamados espectros de operadores. Os espectros são objetos unidimensionais, mas são organizados nesse gráfico bidimensional, mostrando os espectros para diferentes valores racionais de fluxo quântico. É possível ver pela figura, que, à medida que esses valores racionais se aproximam dos irracionais, cada espectro racional se fragmenta em vários intervalos finitos.

E, nesse caso específico, ele tem essa autossimilaridade bonita, dependendo da expansão em frações contínuas do fluxo. Basicamente, o Problema dos Dez Martinis era provar esse pequeno detalhe da figura: que o espectro realmente é um conjunto de Cantor para qualquer irracional. E essa parte do “qualquer irracional” é muito importante.

E a sra. e Artur Avila encararam juntos esse desafio. Como é coordenar e sincronizar duas mentes matemáticas no mesmo problema, numa mesma direção?

Foi muito interessante. Começamos a trabalhar nisso em 2004. Avila era muito jovem na época, tinha acabado de fazer o doutorado. Ele me visitou nos EUA com o objetivo de resolver esse problema. E era logo depois de um avanço do Joaquim Puig, um matemático espanhol também muito jovem, que resolveu o caso para, digamos, “quase todos”, usando uma prova baseada num artigo meu de alguns anos antes, onde eu havia provado outras propriedades. O trabalho pesado já tinha sido feito nesse artigo, e Puig teve várias observações brilhantes que permitiram resolver para quase todos os casos. Quando vi o artigo dele, fiquei pensando “puxa, por que não tive essa ideia?”, mas achei que o problema estava resolvido.

Daí veio o jovem Artur Avila e disse: “Parece que dá para estender seus resultados para uma classe maior de irracionais e, se conseguirmos, podemos resolver o problema todo.” Ele era tão jovem… Eu disse “olha, talvez eu consiga, mas vai ser muito difícil, muito técnico, e ninguém vai ligar.” Eu não queria fazer, mas ele insistiu, e achei que, se já foi resolvido para quase todos os parâmetros, por que fazer para todos? Mas ele tinha a visão de que é importante completar o problema, porque o entendimento real está em fechar todas as lacunas. E começamos a trabalhar.

O plano inicial desmoronou, porque o que achei que podia fazer, só dava para um conjunto limitado de parâmetros. Ia aumentar o conjunto dos “quase todos”, mas não resolver para todos. Tivemos que inventar um caminho diferente. Foi um momento dramático, mas foi muito divertido trabalhar com ele. E temos outros artigos juntos.

E como vocês comemoraram?

No fim de junho de 2004 já estávamos confiantes: tínhamos a prova. Ainda levou quase um ano para finalizar o manuscrito, mas estávamos confiantes. Lembro uma conferência em Montreal, onde muitos matemáticos da área estavam presentes. O Artur não foi, mas Barry Simon estava lá também —foi ele quem popularizou o problema. Fizeram várias comemorações, e entregaram pequenas azeitonas [que remetem aos drinques] para quem contribuiu com o problema ao longo dos anos.

Puig estava lá, Barry Simon, Bernard Helffer, Jérôme Last, e várias pessoas que publicaram sobre o problema ao longo dos anos. Tenho uma foto com as azeitonas, mas o Artur não está nela. E os martinis, bem, eles foram prometidos pelo Marc Kac em 81 ou 82, mas ele faleceu logo depois. Como costumo dizer: já tomamos muitos martinis desde então, especialmente o Artur.



O sistema das olimpíadas de matemática, que é muito forte no Brasil, é excelente. É popular em muitas escolas, assim você encontra crianças com aptidão para matemática e pode desenvolver o interesse delas

Seu trabalho está no cruzamento entre matemática e física. A sra. tem preferência por problemas que têm esse sentido de realidade?

Ah, sim. Sempre é muito bom contribuir com algo que possa ter impacto na física. Especialmente mostrar para os físicos algo que eles não sabem, ou que percebem de forma errada. Já tive alguns momentos assim na vida e, provavelmente, são os resultados de que mais me orgulho.

Muita gente acha que não é capaz de entender ou fazer matemática e não vê a beleza dela. Sua história mostra que a sra. só viu a beleza depois de trabalhar duro. Existe um jeito mais fácil de as pessoas se conectarem com a matemática?

Quanto mais cedo as pessoas começarem a lidar com problemas não convencionais, melhor. Desenvolver domínio exige muito exercício. E quem gosta de fazer 50 exercícios idênticos? Todos gostam da sensação de descoberta, de resolver um enigma lógico, de resolver algo que não está claro no início. É muito importante incorporar situações de descoberta no ensino de matemática desde cedo. Não deveria se ensinar “como pensar”, porque quando você dá um algoritmo, a pessoa perde a sensação de descoberta, de beleza. É importante desvendar algo por conta própria.

Nesse aspecto, o sistema das olimpíadas de matemática, que é muito forte no Brasil, é excelente. É popular em muitas escolas, assim você encontra crianças com aptidão para matemática e pode desenvolver o interesse delas. Foi assim, por exemplo, que o Artur foi descoberto. Muita gente, se não for exposta a isso, cresce sem saber que talvez gostasse de matemática.

A sra. tem acompanhado a guerra na Ucrânia? Como ela a afetou?

É absolutamente horrível. No começo, participei de esforços para tirar algumas pessoas idosas de lá. Veja, eu cresci na Ucrânia, mas sou culturalmente russa. Estudei em Moscou, então ainda tenho cidadania russa. De certa forma, também considerava a Rússia meu país. O fato de a Rússia fazer algo assim foi o pior sentimento para mim. Antes da guerra, sentia até mais afinidade com a Rússia.

Depois de 2008, ficou claro que Putin estava criando um regime autocrático. Não havia mais democracia, mas ainda havia uma certa aparência de normalidade. Quando começou a guerra, o mais devastador para mim foi perder essa conexão. Muitos amigos meus tiveram que deixar a Rússia e viraram praticamente nômades, o que também é horrível. Tudo isso é muito devastador.


Raio-X | Svetlana Jitomirskaya, 59

Nasceu em Kharkiv, na então União Soviética (hoje Ucrânia).

Formou-se em matemática pela Universidade Estadual de Moscou, onde também concluiu o doutorado sob orientação de Yakov Sinai. É professora titular na Universidade da Califórnia em Berkeley.

Sua pesquisa em física matemática foi reconhecida por diversos prêmios, incluindo o Satter Prize da American Mathematical Society (2005), o Heineman Prize da APS e AIP (2019), o Ladyzhenskaya Prize (2022, edição inaugural) e o Barry Prize (2023, edição inaugural). Também foi palestrante convidada em sessão no Congresso Internacional de Matemáticos (ICM) em 2002 e palestrante plenária em 2023.



Fonte ==> Folha SP – TEC

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