Com a confirmação da condenação de Cristina Kirchner, o kirchnerismo parece ter chegado ao fim. No entanto, decretar a morte do peronismo como um todo, pelo menos até aqui, tem sido um erro recorrente na interpretação da história da Argentina. Toda vez que o movimento parece à beira da extinção, ressurge devido a sua ampla base social.
Desde a queda de Juan Domingo Perón (1895-1974) em 1955 —deposto por um golpe militar— até seu retorno triunfante em 1973, o peronismo demonstrou notável capacidade de sobrevivência.
Nos anos 1990, o colapso do modelo neoliberal do peronista Carlos Menem (1930-2021) levou a um desgaste profundo do movimento. Ainda assim, após a crise de 2001, quem tomou as rédeas para a recuperação do país foi o próprio peronismo, primeiro com Eduardo Duhalde, depois com Néstor Kirchner (1950-2010).
Em 2019, mesmo com a alta rejeição à Cristina, o movimento venceu a eleição no primeiro turno, jogando para escanteio o então presidente Mauricio Macri, tão festejado pelos mercados no início do mandato como alguém que enterraria o peronismo e levaria a Argentina ao paraíso liberal. Pois foi o mesmo peronismo que tirou Macri do tabuleiro com uma lavada nas urnas, mesmo com um candidato frágil, Alberto Fernández.
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Essa resistência se explica por sua presença capilar nas zonas mais vulneráveis do país. O peronismo é a única força com uma estrutura real de acolhimento e assistência nos bairros populares. Nas favelas, nos subúrbios, nas prisões, nos bandejões, é praticamente impossível encontrar representantes que pertençam a partidos vinculados à elite. Mas certamente se encontram líderes ligados ao peronismo.
Se isso acaba sendo em benefício ou em prejuízo da população em longo prazo, essa é uma outra história.
Durante os oito anos de Presidência de Cristina Kirchner (2007-2015), a gestão se sustentou graças a uma combinação de políticas clientelistas, ampla utilização de subsídios em serviços e uma retórica nacionalista que galvanizou o apoio popular. No entanto, esse modelo também foi marcado pelo enriquecimento ilícito e desvio de verba em obras públicas.
Mesmo que o kirchnerismo tenha sido agora empurrado para o abismo, o peronismo tem grandes chances de sobrevida com outros atores. É o caso do governador da província de Buenos Aires, Axel Kicillof, cuja real força será medida nas eleições legislativas locais, em setembro.
A rejeição crescente às políticas de ajuste de Javier Milei, os efeitos sociais da inflação —que cai, mas persiste— e a falta de alternativas sólidas de oposição podem abrir espaço para uma nova versão do peronismo ganhar força. O movimento tem experiência em ocupar esse vácuo. Inicia-se agora um processo de reorganização com foco em 2027.
O fator Cristina continuará a ser relevante. A ex-presidente pode atuar na política por meio das redes sociais, como faz seu amigo Rafael Correa no Equador, mesmo condenado e exilado.
O peronismo deve jogar com a imagem da perseguição política, narrativa que pode ganhar força se o custo de vida seguir elevado e a política de ajustes continuar.
Por ora, o partido de Milei é o favorito para as eleições legislativas no resto do país, em outubro. Mas, até a votação para a sucessão presidencial há muito chão, e o ultradireitista terá de lutar contra a crescente insatisfação que vai tomando, aos poucos, as ruas.
Como já aconteceu em outras ocasiões, o peronismo pode parecer derrotado hoje, mas é sempre cedo para descartá-lo.
Fonte ==> Folha SP