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Trabalho livre e reparação histórica – 12/04/2025 – Opinião

Sérgio Ferro, artista plástico, professor e ex-integrante da ALN (Aliança Libertadora Nacional)

Discípulo do arquiteto Vilanova Artigas, Sérgio Ferro optou pela luta armada no final dos anos 1960, em reação à repressão imposta pela ditadura civil-militar que governava o país. Membro da Ação Libertadora Nacional, foi preso e torturado pelo regime no início da década seguinte. Ao ser solto, viu-se afastado compulsoriamente da Universidade de São Paulo, onde era professor, sob a alegação absurda de “abandono de trabalho”. Exilou-se então na França, tornando-se professor e artista plástico, com uma carreira sólida e longeva.

Atualmente, a trajetória desse grande artista, arquiteto e pensador está sendo justamente celebrada. No Museu de Arte Contemporânea da USP, Ferro apresenta uma abrangente mostra retrospectiva de seu trabalho, com curadoria de Fábio Magalhães, Maristela Almeida e Pedro Fiori Arantes, ao mesmo tempo que a Editora 34 relança o seu importante livro “Arquitetura e Trabalho Livre”, em dois volumes.

Se Artigas, membro do Partido Comunista Brasileiro, acreditava na resistência ao regime através do exercício da profissão de arquiteto, Ferro, ao contrário, fez a crítica radical ao papel do desenho (projeto), mostrando o quanto ele engendra relações de submissão e violência no canteiro de obras.

Percebendo que a extração de mais-valia na construção civil tem um papel central no funcionalismo do capitalismo periférico, elaborou uma importante defesa do trabalho livre, coletivo e emancipado, apontando práticas alternativas de arquitetura em diálogo direto com a pedagogia do oprimido de Paulo Freire e com a “estética da fome” do Cinema Novo. Não por acaso, tempos depois veio a se aproximar tanto dos movimentos dos trabalhadores sem-terra e sem-teto quanto das cooperativas de construção autogeridas, surgidas no processo de redemocratização do país. Assim, mesmo vivendo fora, esteve sempre próximo dos movimentos de transformação do Brasil e presente como uma referência política incontornável para os estudantes da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design da USP.

Em março último, por iniciativa da FAU, do Instituto de Arquitetura e Urbanismo (São Carlos) e do MAC —unidades de ensino e cultura da USP—, e com forte apoio dos estudantes, o Conselho Universitário votou a concessão do título de doutor honoris causa a Sérgio Ferro, 86. Trata-se de uma justa e imprescindível reparação histórica, e também um reconhecimento acadêmico à sua obra, com especial importância por tratar-se de uma homenagem em vida. Pois Sérgio, assim como alguns dos que sofreram bárbaras violências no período da ditadura, ainda está aqui: atuante, e simbolizando um tempo que não pode passar incólume sem a justa reparação que nos permita evitar novos retrocessos.

Tal reconhecimento tem, portanto, relação direta com o sentimento despertado em muita gente pelo sucesso do filme “Ainda Estou Aqui“, de Walter Salles, recentemente premiado no Oscar. Nessa importante encruzilhada histórica, a USP assume uma postura de destaque, tanto com o ato em defesa da democracia organizado nas arcadas da Faculdade de Direito, em reação aos deploráveis eventos de 8 de janeiro de 2023, quanto com a concessão, mais recente, de uma série de diplomações honoríficas aos seus estudantes mortos pela ditadura. Sabemos que a disputa pela história é sempre política. E, nesse ponto, o exemplo de Sérgio Ferro sempre nos exigirá assumir as posições menos cômodas e acomodadas.

TENDÊNCIAS / DEBATES

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.



Fonte ==> Folha SP

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