A América Latina foi deixada em terceiro plano na política externa americana por três décadas e agora subiu alguns degraus nas prioridades dos Estados Unidos, como um redivivo “quintal” e palco da rivalidade global do país com a China. O primeiro capítulo da nova estratégia de segurança nacional do presidente Trump, recentemente divulgado, lembra os piores capítulos da velha ordem. E está sendo aplicado na Venezuela, para onde os EUA enviaram forças navais e aéreas que mataram 87 pessoas com a destruição de barcos supostamente com drogas. Agora, se apoderaram de um petroleiro em águas internacionais próximas da costa venezuelana. Há no ar elementos das antigas invasões de “marines”, desta vez para forçar a saída do ditador Nicolás Maduro. Trump preza o espetáculo e a ameaça da força, sem que isso indique que vá de fato fazer uso dela.
A estratégia de segurança, que menciona a Doutrina Monroe (a América para os americanos) e cria um “Corolário Trump”, assemelhado ao Corolário Roosevelt que se tornou famoso no início do século XX, resumido na frase “fale suavemente e carregue um grande porrete”. Trump julga ter aprimorado a fórmula, falando rudemente e com ameaças de porretadas em primeiro lugar. “A força é a melhor forma de dissuasão”, diz a nova cartilha de segurança nacional.
Como maior potência militar, econômica, financeira e tecnológica do mundo, os EUA querem manter essa liderança impedindo que outras nações os superem nesses quesitos, e hoje só há uma capaz disso: China. A “doutrina” Trump dava impressão de desengajamento e volta ao isolacionismo do país no mundo, mas era só impressão. “Os EUA não podem permitir a qualquer nação tornar-se tão dominante a ponto de ameaçar seus interesses”. Isso inclui impedir a expansão tecnológica, econômica ou militar da China em todos os continentes, e ela tem presença avançada na América Latina.
Em um tom que pode trazer preocupação à diplomacia brasileira, a estratégia menciona que “certa influência externa será difícil de reverter, dados os alinhamentos políticos entre certos governos latino-americanos e certos atores externos”. O Brasil é membro fundador do Brics, hoje ampliado e dominado pela China como um bloco potencialmente antagônico aos EUA e destinado a arregimentar o “Sul Global” para suas causas.
A definição dos interesses políticos e materiais de segurança dos EUA é ampla o suficiente para motivar intromissão em todos os países que possuam ativos valiosos, como a política do “big stick” influenciou as ditaduras das “repúblicas de bananas” da América Central. Hoje, os EUA exigem acesso garantido a “materiais e cadeias de suprimento críticas”, uma das prioridades econômicas, ao lado do comércio equilibrado, da reindustrialização, do domínio energético e da reanimação da base industrial de defesa.
Para isso, a estratégia de Trump assevera que negará aos competidores de fora do Hemisfério Ocidental (leia-se China) a capacidade de “possuir ou controlar ativos vitais estratégicos”. Nessa tarefa, os EUA precisarão de ajuda, e sua diplomacia deverá ter “foco em engajar campeões regionais para que possam criar uma estabilidade tolerável na região, mesmo além de suas fronteiras”. Esse, por exemplo, poderia ser o papel do Brasil no desarme do conflito dos EUA com Nicolás Maduro, que ameaça a paz regional. Em conversas com Lula, Trump desconversou sobre as ofertas de mediação brasileira.
O engajamento de nações alinhadas aos EUA buscará em primeiro lugar cessar a migração ilegal para os EUA e combater cartéis das drogas. Mas não se trata apenas de atrair governos. No documento, os EUA prometem “recompensar e encorajar partidos políticos e movimentos amplamente alinhados com nossos princípios e estratégia”. Com base nessas ideias foi que Trump castigou o Brasil com 50% de tarifas alegando “perseguição” política ao ex-presidente Jair Bolsonaro e depois mudou de ideia. Nada garante que não recaia nelas, mas o fato é que assume abertamente interferência política em países soberanos. Os EUA não ignorarão, porém, “governos com diferentes orientações que queiram, apesar disso, dividir interesses e trabalhar com o país”.
Caso não sejam eleitos como parceiros de primeira escolha, os EUA irão “por vários meios desencorajar sua colaboração com outros”, supostamente adversários americanos. O convencimento envolverá, obviamente, recursos. Qualquer aliança ou ajuda, aponta o documento, dependerá de reduzir a “influência externa adversária” do controle de instalações militar, portos, infraestrutura chave e a aquisição de ativos estratégicos.
Chama a atenção que sai da política externa o mantra de levar a democracia a todos os cantos do planeta, que já serviu de pretexto a várias intervenções armadas ao redor do mundo. Para Trump, a tarefa do governo é assegurar “os direitos naturais dados por Deus aos cidadãos americanos”. Autocratas como Trump têm um conceito especial de liberdades e passam a criticar “restrições antidemocráticas a liberdades essencias na Europa”. E não se trata da Rússia, mas das velhas democracias continentais, antes as principais aliadas dos Estados Unidos.
Fonte ==> Exame