Cerca de 40% das espécies de mamíferos atuais são roedores, e um estudo feito por cientistas brasileiros pode ter identificado uma razão insuspeita para tamanho sucesso evolutivo: as unhas do polegar.
Com a ajuda de um banco de dados que inclui a grande maioria dos roedores conhecidos, os pesquisadores verificaram que a presença de unhas nesse dedo, e não de garras, como nos demais, provavelmente é a chamada condição ancestral do grupo, que acompanha os bichos desde que se separaram dos demais mamíferos.
Ocorre que essa característica é o segredo por trás de um dos comportamentos mais curiosos de muitos roedores: a capacidade de manipular a comida com as patinhas da frente e ir mastigando o alimento que seguram aos poucos, como uma criança que segura uma barra de chocolate.
Para os autores do estudo, liderados por Rafaela Missagia, do Departamento de Zoologia da USP, essa capacidade pode ter tido um papel-chave para o êxito alimentar dos roedores diante do surgimento das primeiras plantas produtoras de frutos e sementes duras há várias dezenas de milhões de anos.
“Parece um traço bem particular dos roedores, especialmente considerando a combinação única de unhas nos polegares e garras nos outros dígitos [dedos]”, disse a pesquisadora à Folha. “Os coelhos, que são os parentes mais próximos dos roedores, apresentam garras em todos os dedos, enquanto os primatas que fazem parte do mesmo grande grupo, o dos Euarchontoglires, têm unhas em todos os dedos.”
A análise conduzida por Missagia e seus colegas acaba de sair no periódico acadêmico Science, um dos mais importantes do mundo, com participação de colegas de instituições dos EUA, da China e do Reino Unido.
Como o dedo (ou dígito) que os seres humanos chamam de polegar é contado como o primeiro (considerando, por exemplo, a mão direita humana, e contando da esquerda para a direita), ele é designado no estudo pela sigla D1.
Já as estruturas compostas pela proteína queratina que ficam na ponta dos dígitos recebem o nome genérico de “unguis”, podendo ser unhas (se forem chatas, como a dos seres humanos e demais primatas), cascos, como nos ruminantes, e garras (em geral, recurvas). No caso dos mamíferos, as unhas costumam estar associadas à vida arbórea, as garras à alimentação carnívora ou à escavação de tocas e os cascos à corrida.
A diversificação dos roedores em milhares de espécies significa que eles não seguiram um modelo único, é claro —há muitas espécies cavadoras e arbóreas, e até semiaquáticas, como as capivaras.
No entanto, o mapeamento feito pelos brasileiros e seus colegas, que incluiu 83% dos gêneros do grupo —ou seja, uma classificação um pouco mais abrangente que a de espécie— mostrou que 86% deles seguem o padrão da presença de unhas no D1. O restante pode apresentar garras ou então nenhuma das duas estruturas (em casos em que o D1 é muito pequeno, por exemplo).
“A amostragem [para mapear os dígitos de cada gênero] foi feita inteiramente a partir de espécimes depositados em museus, alguns coletados há mais de 100 anos, o que mostra como esses acervos continuam sendo úteis para a coleta de dados”, destaca Missagia.
Também há uma alta correlação entre a presença do D1 com unha e a manipulação do alimento definida como oromanual (ou seja, levando a comida da mão para a boca). Nos roedores, o hábito de alimentação puramente oral, sem a ajuda das patinhas e do D1, é bem mais rara, embora esteja presente, por exemplo, no grupo que abrange porcos-espinhos e porquinhos-da-índia.
“Não podemos classificar o polegar dos roedores como um polegar opositor, tal como o dos primatas. O que podemos dizer é que, da mesma forma que nos primatas, as unhas aumentam a destreza para manipulação do alimento, no caso dos roedores”, resume a pesquisadora da USP.
E essa capacidade de manipulação pode ter sido crucial justamente por conta das transformações evolutivas que afetaram outros aspectos da alimentação dos roedores primitivos, defendem os pesquisadores.
O surgimento dos grandes incisivos (os pares de dentes da frente) de crescimento contínuo do grupo foi muito útil para atacar frutos e sementes duros. Mas as fortes mordidas com os incisivos não podem ser realizadas ao mesmo tempo que a mastigação com os molares. Segurar o alimento duro de forma hábil o suficiente para não perdê-lo com a força das mordidas ajudaria a explicar a importância do polegar dos bichos, enquanto os demais dedos podiam ser usados para cavar ou escalar.
Fonte ==> Folha SP – TEC