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Viva Renato Russo – 10/04/2025 – Djamila Ribeiro

Ilustração de fundo rosa, com a imagem do cantor Renato Russo ao centro. Ele usa uma blusa azul escura, leva rosas vermelhas na mão, tem o cabelo preto, usa barba e óculos.

Quando estreei neste espaço, há pouco mais de cinco anos, escrevi sobre uma espécie de vergonha que sentia em dizer que admirava Whitney Houston mais do que tudo. Ela me segurou pelas mãos quando perdi minha mãe e meu pai em anos consecutivos e não sabia o que fazer. “Greatest Love of All”, na sua voz, foi um divisor de águas na minha vida e a verdade é que vê-la na televisão, linda e brilhante, me possibilitou sonhar com a luz em um contexto de tanta escuridão.

Ainda assim, na faculdade, cercada por colegas que se gabavam de ver filmes iranianos —que realmente aprecio—, eu me retraía. Não tinha coragem de falar do meu amor por Whitney e tanto isso ficou na minha cabeça depois que não tive a menor dúvida do tema da uma primeira coluna: “Desculpe, Whitney”. Se o título continuasse, poderia ter sido “Desculpe, Whitney. Eu amo você”.

Lembrei isso porque, no último mês, Renato Russo completaria 65 anos. Um número que soa estranho, quase irreal, para quem ainda o imagina jovem, de blazer preto e voz cortante. Morreu cedo demais. Mas deixou o suficiente para atravessar gerações —inclusive as que, como a minha, demoraram para se aproximar da Legião Urbana.

Venho de uma geração em que os meninos que tocavam violão se achavam gênios incompreendidos só porque sabiam tocar “Faroeste Caboclo” de cor no fundão da sala de aula ou nas excursões escolares. Eram capazes de emendar os nove minutos inteiros sem errar a letra —e achavam que isso os tornava automaticamente profundos.

Na minha época, a turma branca respondia de peito cheio: “É a porra do Brasil!”, quando alguém perguntava “Que país é esse?!”. Aquilo parecia fazê-los acreditar que eram conscientes, engajados, indignados com o estado das coisas. Mas bastava observar um pouco melhor para perceber que aquela rebeldia era performática.

Eu achava tudo aquilo patético, pois esses meninos —que eram colocados no lugar de “os populares”— e algumas meninas que os seguiam como ecos eram racistas comigo. Ficavam em frente ao shopping por onde eu passava e eu rezava para que não me chamassem de neguinha, como costumavam fazer. Muitas vezes, cutucavam o amigo e diziam: “Olha sua mina aí”. O amigo se apressava para negar e dizer “só se for a sua”, enquanto os meninos riam. Como se meu corpo estivesse à disposição do escárnio.

Eles ouviam Legião Urbana e, por isso, a jovem Djamila —com 13 ou 14 anos— evitava ouvir a banda a todo custo. Associei a música à personalidade deles.

Demorei anos até me desprender desse peso e começar a ouvi-la. Escrevi sobre isso no meu livro “Cartas para Minha Avó”, ao refletir que o racismo é um sistema que nos nega inclusive as potências que poderiam nos fazer bem. E que, sim, o racismo atravessa também nossa relação com a arte.

Aos poucos, fui conhecendo Renato Russo e me encantando com sua força poética e sua vanguarda. Hoje em dia não passo uma semana sem ouvir uma de suas músicas, e “Tempo Perdido” será para sempre uma das minhas favoritas da vida.

Sua vanguarda estava nas composições, na voz e cadência inconfundíveis e na forma como levava a música aos palcos. Estava também em seus posicionamentos políticos. Ao falar publicamente sobre sua sexualidade, por exemplo, quantos jovens puderam sonhar com a luz de maneira similar àquela Djamila que ouvia Whitney no radinho Lenoxx?

Russo denunciava a hipocrisia dos abismos sociais de um país feito de silêncios e negações. Falava da dor, do medo, da desesperança e da resistência, da transformação. Cantou o amor e embalou sonhos de casais apaixonados pela vida.

Tornou-se, para sempre, um ícone da música brasileira, cronista das angústias de uma geração espremida entre a ditadura e a promessa falaciosa de uma democracia que continuou a negar dignidade aos seus cidadãos e cidadãs.

Morreu aos 36 anos e seu legado só prova ainda mais a intensidade de sua vida, na forma como, em tão pouco tempo —ou com todo o tempo do mundo, vai saber—, transformou a música brasileira e a levou para todo lugar —e sequer o agradecemos a contento.

Se a Djamila adolescente demorou a dizer do seu amor por Whitney Houston, também é verdade que só agora, adulta, mais de cinco anos depois de estrear a coluna no jornal, me sinto à vontade para dizer o quanto admiro Renato Russo e o quanto sua existência no mundo segue inspirando.

É sempre tempo de ouvi-lo com o coração aberto.



Fonte ==> Folha SP

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