Este provavelmente é o capítulo mais complexo e incerto da nossa série sobre as origens do monoteísmo. Chegamos ao momento histórico em que dois Estados monárquicos de língua hebraica, os reinos de Israel e Judá, no norte e no sul, estão firmemente estabelecidos na maior parte do atual território palestino e israelense (e também em partes da moderna Jordânia). Ou seja, trata-se mais ou menos do período a partir do ano 800 a.C.
É também a fase em que os antigos israelitas enfim se tornam “visíveis” para os grandes reinos e impérios do Oriente Próximo. Os nomes dos reinos e de seus soberanos começam a aparecer em inscrições aramaicas feitas pelos soberanos de Damasco, em textos do Império Assírio e, mais tarde, também da Babilônia, e diversos nomes e eventos são basicamente os mesmos que aparecem na narrativa bíblica.
Tudo indica que tanto Israel quanto Judá adotavam Iahweh/Javé como seu “deus nacional” ou, talvez, dinástico, numa associação próxima com a família real (como a dinastia de David em Judá). Processos semelhantes, nos quais uma divindade adquire uma associação particularmente forte com o governante e o reino, também parecem se fortalecer nos Estados não israelitas vizinhos. De início, porém, isso não significa que o culto a outras divindades do panteão cananeu seja abandonado, a exemplo do que vimos com as aparentes menções a Asherah em textos do período.
A dúvida de muitos milhões de dólares é saber como ao menos alguns dos grupos israelitas promoveram a transição teológica que transformou Iahweh, de deus nacional/dinástico que era, em Deus único. Temos algumas correlações intrigantes, mas, como sempre é importante ter em mente, correlação nem sempre é causa. Vejamos algumas delas.
1) Transformações sociais e econômicas
A ascensão dos Estados monárquicos, a centralização do poder dos reis e a integração cada vez maior dos israelitas na economia internacional do Oriente Próximo parece ter aumentado a desigualdade e as tensões sociais. Vemos indícios disso nos textos de profetas desse período, como Amós, que associa as dificuldades econômicas dos camponeses e o luxo da elite urbana ao abandono dos princípios religiosos do culto a Iahweh.
Nesse caso, a figura do Deus bíblico é vista pelos profetas como um chamado ao arrependimento e ao combate a essa desigualdade.
2) A sombra dos impérios
Conforme mencionamos no segundo parágrafo, as grandes potências da região enfim notaram a existência dos israelitas. Mas não ficaram só nisso, como sabe qualquer leitor do Antigo Testamento. Ambições expansionistas, principalmente por parte da Assíria, fazem com que tanto Israel quanto Judá se transformem, de forma paulatina, em campo de batalha ao longo do século 8º a.C.
A escolha é entre se submeter aos assírios e tentar organizar algum tipo de aliança regional para manter a independência. O que nos leva ao terceiro item.
3) O fim do reino do Norte
O reino de Israel, no norte da região, escolheu a resistência –e se deu muito mal. Em 720 a.C., os assírios capturaram Samaria, a majestosa capital do reino do Norte, e deportaram dezenas de milhares de israelitas para a Mesopotâmia. Dados arqueológicos sugerem que outros milhares fugiram para Judá e engrossaram a população de Jerusalém.
O trauma dessa primeira destruição não pode ser subestimado. Para a tradição profética, ele teria confirmado que uma grande reforma religiosa, com uma devoção mais intensa e exclusiva a Iahweh, era indispensável para que os sobreviventes em Judá não sofressem o mesmo destino.
Os próximos passos desse processo serão objeto do próximo episódio, com o reinado do judaíta Josias no século 7º a.C. e as origens do livro do Deuteronômio. Até lá!
Fonte ==> Folha SP – TEC